A placa diz que faltam dez quilômetros para chegarmos em Hortência, e de repente tudo parece muito oficial.
Eu mastigo o lábio de baixo enquanto tento ignorar a ansiedade que cresce em níveis preocupantes, esmagando todas as outras emoções que vivem dentro de mim. Não há mais espaço para a raiva, para a decepção ou para a teimosia agora que o medo toma conta de tudo. Encolho minhas pernas para cima do banco e abraço meus joelhos, me concentrando em respirar fundo e me libertar de todos esses temores. Detesto me sentir refém de qualquer coisa, quanto mais de mim mesma.
Parte de mim queria muito desistir de fingir ser durona e simplesmente chorar no colo da minha mãe, espernear até ela decidir que tudo isso foi uma péssima ideia e que é melhor voltarmos logo para nossa antiga vida em São Paulo.
Mas, além da coisa com a greve de silêncio, eu ainda estou muito brava com ela por causa do que ela disse sobre... sobre aquilo. Mesmo sem a intenção, foi brutalmente cruel. Então, não posso ceder tão fácil, nem mesmo que minha criança interior insista muito.
Encosto o queixo nos joelhos e perco meus olhos no horizonte da estrada enquanto a música que sai do rádio atua como trilha sonora do meu drama.
[Oito quilômetros para Hortência.]
Não é como se eu nunca tivesse estado em Hortência antes, não é o desconhecido que me aterroriza — justamente o contrário.
Hortência é a cidade onde mora a família da minha mãe, e eles são... bem, pela falta de outra palavra... loucos.
Oh, mas não diga isso na frente deles, porque senão você vai passar horas e horas escutando um discurso gigante sobre a estigmatização de transtornos psicológicos e a relatividade do termo loucura e blá blá blá blá blá, o que só vai provar a você que eles são, de fato, completamente pirados. Confie em mim. Falo por experiência.
E se você por acaso acha que eu estou exagerando, aqui vai uma informação importante que vai te convencer de vez sobre a minha honestidade pura e factual: todos os membros dessa família são psicólogos.
Quando eu digo todos, quero dizer todos mesmo.
Cada. Um. Deles.
Mãe, pai, filho, filha, avô, avó, titia, gato, cachorro, papagaio... Todo mundo!
Sério, não existe lugar mais aterrorizante em todo o universo.
Vovó Henriqueta e vovô Sebastião, os dois formados em psicologia, se casaram nos anos setenta e inventaram de nomear os filhos em homenagem a grandes figuras da psicologia. Assim, tiveram a tia Mamie (Phips), o tio Ivan (Pavlov), a tia Annita (de Castilho e Marcondes Cabral) — cujo nome de batismo era Carl (Jung), quando ainda achavam que ela era um menino —, a tia Eleanor (MacCoby), a minha mãe, e o Tio Jean (Piaget).
Se a coisa toda tivesse parado com os nomes, tudo bem.
Mas, não.
Meus avós praticamente criaram todas as crianças para serem psicólogos no futuro. E meio que funcionou: todos eles cursaram psicologia. (Até mesmo minha mãe, embora ela não exerça a profissão.) E todos eles se casaram com psicólogos e tiveram filhos com nomes em homenagem a outras grandes figuras da área. (Menos minha mãe, no caso.)
Tia Mamie é mãe do Siggy — ou, como consta na identidade dele, Sigmund (Freud) —, que tem atualmente 19 anos e é o orgulho da família, cursando (óbvio) Psicologia.
O Tio Ivan é casado com a Tia Regina, que é mais de dez anos mais nova que ele (mas ainda assim é psicóloga, e isso é tudo o que conta), e eles não têm filhos, mas têm o Pele (um gato) e o Osso (cachorro) e uma jabuti chamada Dorothea Dix.
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Psicologia Reversa
Genç KurguVovó Henriqueta acha que houve uma falha monumental na criação de sua neta. Tio Ivan, por outro lado, acredita que a teimosia de Isabel esteja diretamente relacionada aos três Touros em seu mapa astral. A opinião profissional de Tia Anni...