KREncaixo a última peça na fuzil que desmontei para limpar, desde moleque meu pai me ensinou a desmontar e montar vários tipos de arma. Ele me treinou para ser seu sucessor e isso era meio que uma lição de casa. Gosto de fazer para passar o tempo, distrair, relaxar. Destravo a arma e levanto na altura dos olhos, testando a mira. Escuto barulho que parece ser briga, vindo do lado de fora da boca. Segundos depois o rádio apita.
– Desce aqui KR. – Pablo fala na nossa frequência particular.
Atravesso a fuzil nas costas, qualquer coisa ela já tava prontinha pra ser usada. Desço e vejo vários curiosos ao redor de dois vapores. Um deles está com a cara toda ensanguentada e o outro que está com o olho roxo e aponta uma pistola para o cara arrebentado.
– Que porra é essa aqui? – Grito e me aproximo deles.
– Vou matar esse desgraçado KR, peguei ele tentando estuprar minha mulher nos beco. – Fala enfurecido o que aponta a arma.
– Tá de vacilo, talarico? – Coloco a fuzil na mão, o cara no chão me olha assustado. Não admito estupro aqui na favela, muito menos de mulher alheia, todos sabiam, não sei porque estão me fazendo perder tempo.
– Ela se insinuou pra mim patrão. – Fala erguendo as mãos em forma de redenção. Se a mulher era quenga ficava difícil ser justo. Antes que eu fale qualquer coisa, o armada da um tiro no joelho do outro.
– Mentiroso do caralho. – Grita alto. Sem olhar em direção ao atirador, com uma mão só, aponto a fuzil em sua direção.
– Fica quieto caralho, não gasta minha munição por causa de puta.– Ando até o cara caído no chão, encosto o cano da fuzil bem no meio da testa dele. – Sabe que não admito estupro na minha favela. – Digo sem paciência.
Não tenho saco de ficar apartando briga de boi na rua. Ele assente rápido e levanta com dificuldade, tentando sair dali.
– Bora vazar e procurar o que fazer. – Grito para os curiosos ao redor e dou tiros no ar. Todos saem em questão de segundos, dou as costas para voltar ao escritório.
– Coé KR, não vou deixar assim, é a minha mulher cara. – O vapor que atirou no outro fala.
Dou um sinal para o Pablo, que está a metros dali, encostado no muro fumando um cigarro. Ele sabe que não tenho paciência para dois papos, então deixo nas mãos dele, que sabe o que fazer e é mais sensato que eu. Entro no barraco mas quando estou no meio da escada o rádio apita. Puta que pariu.
– Estão invadindo a área leste patrão. – Reconheço a voz de palito na linha, era um dos meus vapores mais antigos.
– Mete bala neles, quero todos mortos. – Dou meia volta e lá fora monto uma moto qualquer e arranco pra área leste, que não fica muito longe da boca. Escuto sons de tiro e paro, deixo a moto ali, e ando na surdina pelos becos pra tentar pegar algum desprevenido. Entro numa viela e vejo dois corpos. Me aproximo e reconheço, é dos nossos. Os cordões da facção também entregam.
– Tem pessoal nosso morto aqui, cadê esses filho da puta? – Sussurro no rádio pra geral.
– Foram só dez patrão, matamos dois, o resto se mandou. – Palito responde.
Não faz sentido eles virem em pouca quantidade, era praticamente suicídio e mesmo assim mataram dois dos nossos, tinha dedo do puto nisso. O pai dele era rival do meu, o cara pegou a rivalidade na família, já tentou invadir a Trindade várias vezes, mas só para sair no prejuízo, éramos muitos e a tropa dele não tinha chance.
– Reforcem a segurança porra, cês tão dando o cu e esquecendo de vigiar esse caralho. – Grito na frequência da área leste.
Tem vigilância em todas as áreas da favela, por ser muito grande é dividida em lotes e em cada lote tem um responsável e todos eles respondem a mim e lideram os vapor da área. Justamente pra essa tipo de descuido não acontecer. Dez homens era um puto descuido. Volto para boca, puto da vida, e chamo os quatro líderes pra uma reunião, reforço ainda mais a segurança e boto olheiro nas ruas, para o caso de ter X9 na área.
◆◆◆
– Pablim fica de olho na geral que eu tô de saída. – Já era noite e eu precisava relaxar um pouco, esvaziar a cabeça, e isso eu só conseguia em um lugar.
– Pode deixar parceiro.
Pablo é o sub comandante do morro, confio Trindade a ele de olhos fechados. Vou até minha Kawasaki, monto e acelero, descendo o morro em alta velocidade. Chego na avenida e em poucos minutos chego onde quero.
Estaciono a moto em frente a um muro descascado, não há quase ninguém na rua, passo pelas árvores que ficam na entrada do terreno abandonado. Olho o prédio a metros de mim e lembro da minha infância e minha mãe, ela me apresentou esse lugar. Já que morava aqui antes de evacuarem o prédio, foi aí que se mudou pra Trindade e conheceu meu pai.
Ela me trazia aqui quando as coisas ficavam pesadas, vínhamos aqui muitas vezes. Corri muito por esse terreno, consigo visualizar ás lembranças nesse lugar, com ela. Mas volto a realidade quando escuto uma música tocando por ali. Ando mais alguns metros e vejo uma garota, dançando sozinha, quase no escuro.
Só a lâmpada velha na parede do prédio, iluminava o local. Estou a uns trinta metros dela e ao invés de me sentir acuado por não estar sozinho, sento por ali e continuo olhando a mina bonita dançar. O corpo perfeito se move com precisão, ela parece saber o que está fazendo e ainda não me viu sentado aqui.
Ela é alta e tem um belo par de pernas, e é tão branca que se não tivesse a luz na parede eu continuaria vendo ela. Os cachos volumosos balançam conforme ela se move, dançando junto com ela. De costas pra mim, me dava um visão completa de sua bunda, que prendeu minha atenção se movendo ao ritmo da música. Minha realidade some, não tem mais morro, raiva ou rival. Só ela dançando.
Quando ela vira de repente, subo minha visão pra imensidão azul daqueles olhos, que se arregalam um pouco ao me ver ali, assistindo ela. Por um momento fica tensa, da pra ver pela expressão em seu rosto, depois começa a me analisar e não leva muito tempo até ficar tensa de novo, afinal estamos sozinhos e não sou a imagem perfeita de um bom homem. Me surpreende não ver pânico em seu rosto. Volta a me olhar nos olhos e num susto de vira de novo.
Percebendo que me encarava. Baixo a cabeça e acho graça das reações dela. É muito expressiva. Expressiva, linda e gostosa.
Balanço a cabeça e espanto os pensamentos idiotas que querem surgir. Ela não é do morro, não é puta, não é pra mim. Me surpreendo quando ela volta a dançar ao invés de sair correndo e não sou incapaz de tirar os olhos dela. Depois de um tempo ela para e começa a arrumar suas coisas. Levanto e vou embora, pra não ter perigo de ver ela de perto e fazer a besteira de falar com ela.
Volto pra favela e vou direto para o meu barraco, deixo a moto na garagem e entro, indo direto para o andar de cima. Tomo um banho rápido ainda pensando na mina do terreno, dançando sozinha no nada. Termino o banho e vou logo deitar. Demoro a pegar no sono. Volto a pensar nos problemas da favela, na minha vida que se resume a ele, e o mais imbecil de tudo, penso na garota que só vi uma vez e já imagino coisas com ela.
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AO SAIR DO MORRO (Completo)
RomantizmCallie é uma jovem dançarina, dedicada fielmente a sua carreira, onde batalha diariamente para receber uma tão sonhada bolsa para estudar fora do país. Seu foco muda ao aceitar um convite, e esse convite a levará a um rosto conhecido, e mesmo que a...