Lembranças perdidas

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- Quais outras palavras usar? Pois quantos ser humanos normais acordam: vestidos com roupas e acessórios estranhos, em um lugar estranho, com gente... Bem... Estranha? - O Dr. Bernack ficou pensativo, desejei até ler mentes, mas certamente ele não pensava na redundância da palavra "estranho".
Abriu uma das gavetas da escrivaninha, com o ar ainda pensativo, retirou um papel e entregou-me. Havia nele 15 perguntas objetivas, perguntas que sem dúvida levantariam lembranças inoportunas. Fiquei inerte.
- Por favor responda. Vai me ajudar a identificar a sua doença. - Perguntei a mim mesma se aqueles questionários eram de prache. Mas três perguntas particulares chamaram minha atenção:
13- O/A paciente sofreu algum tipo de trauma infantil?
( ) Sim. ( ) Não.

14- O/A paciente vive situações discriminatórias em seu dia a dia?
( ) Sim. ( ) Não.

15- O/A paciente apresenta muitas fobias e sentimento de auto rejeição?
( ) Sim. ( ) Não.

Havia respondido todas até então. Mas mediante as três últimas fiquei sem reação; perplexa.

- Algum problema? - Questionou-me suavemente.
- Não. Digo; é que estas questões estão em terceira pessoa. Não estão diridas a mim por que devo responde-las diretamente?
- Já lhe disse que geralmente os familiares ou conhecidos é que procuram diagnóstico e tratamento. Os pacientes padecem muitas vezes desequilibrados, incapazes de responder por conta própria. Por isso o pronome.
- Ah. - Disse-lhe sem graça encarando o papel. Pensei com cuidado, mesmo as respostas sendo óbvias. O Dr. Não parecia ter a menor preocupação com o tempo afinal eram duas horas de sessão. Fiz um X em todas as opções afirmativas. Imaginei que ele já podesse prover resultados.
Analisou o questionário. Voltou a pupila negra para meu rosto, com a feição preocupada maquiada sobre o sorriso frio.
- Sabe que quando alguém vem para um psicanalista deve estar disposta a se abrir...
- Mas eu respondir as questões com sinceridade. - Contrariei.
- Eu não tenho dúvidas sobre isso. - Pensei em questiona-lo porém já vinha fazendo isso com frequência. - A questão Manuela ( esticou o rosto para perto apoiado com as mãos na escrivaninha) é que a senhorita quer ter respostas, porém parece não se dá conta que só você pode tê-las. Precisa deixar-me questiona-la, abrir-se e contar seus medos, angustias e fraquezas. - Seu olhar empático não proveu nenhum resultado sobre mim, fiquei cabisbaixa instantaneamente. - Isso geralmente leva tempo. É normal o paciente demorar se expor. Contudo acredito que seja importante pra você que seja tratado com urgência.
- Eu respondir o questionário. Não pode dizer o que tenho? Ou pelo menos o que acha que tenho? - Murmurei baixinho, tentei de maneira fútil ser prática.
Ele sorriu delicadamente, pelo meu tempo analisando suas condutas certamente isso significara contrariedade.
- Infelizmente não. São muitas as possibilidades, a mente é diferente do corpo mas se iguala em muitas questões: em muitas circunstâncias não basta saber os sintomas é preciso conhecer a causa.
- O que quer que eu diga?
- Pode começar contando sua história. Pelos traumas infantis.

Respirei fundo...

- Eu sou carioca, quando tinha 5 anos meus pais se separaram. Eles brigavam muito, porém nunca chegavam a se agredir. Ao separarem minha mãe ficou com tudo que julgava lhe pertencer, inclusive a mim; viajou comigo até São Paulo e depois de 2 anos arrumou... - Dei uma pausa. Minha garganta ficou seca. Falar do meu passado fazia-me estremecer.
- Um namorado - Completou. Fechei os olhos e voltei à história.
- Sim. Acabou não dando muito certo, demorou; mas ela percebeu o quanto ele era grotesco! - Cuspi as palavras.
- Grotesco?
- Sim. - Assenti.
- É uma palavra forte, o que exatamente ele fez para merecer tal termo?
- É... - Uma lágrima escorreu. - Eu não me lembro. - Contei entristecida. Realmente por mais que tentasse não conseguia repor estes detalhes da memória.
- Tudo bem. Continue. - Dr. Bernarck anotando em seu bloco de papel.
- Ele carregou tudo que ela tinha de valor. Sem dinheiro e completamente sem condições de me criar voltou a falar com meu pai. Meu pai sempre me amou, foi esbarrado várias vezes pela justiça em busca da minha guarda, pagou a minha e a passagem da minha mãe para o Rio. O Dr
Rodrigues a perduou. Entretanto perdoar é ignorar os erros e vivenciar a luz de não ser acompanhado pela sombra do rancor, e não necessariamente continuar uma história como se tudo não bastasse de um ponto de continuação. Foi isso que aconteceu ele a ajudou até se erguer e na primeira oportunidade ela foi embora.
- Manuela; você disse que seu pai a ama. E a sua mãe, acha realmente que ela não a ame?
- Se me amasse não sumiria sem dar notícias a quase 10 anos!

Dupla Personalidade - Quem sou eu?Onde histórias criam vida. Descubra agora