O dia estava quente para um início de primavera, e Cornelia pensava o quanto ainda iria suar sob seu manto de maga do Círculo. As mangas compridas e o tecido grosso serviam bem para evitar que tinta de pergaminho, enxofre ou guano caísse sobre a pele, além de esquentá-la nos corredores de pedra fria da Torre do Círculo. Em uma viagem longa, porém, eram pouquíssimo práticos, ainda mais em uma viagem a pé. Ainda faltavam milhas para ela percorrer sobre os blocos de pedra da Estrada Imperial, e mesmo tendo uma vista privilegiada do interior de Ferelden por conta da elevação da estrada, nada a poupava do cansaço de precisar caminhar até as pernas doerem, e depois um pouco mais.
Foi com alívio que recebeu o som distante das rodas de uma carroça rangendo a cada volta e dos cascos de um cavalo de carga nos tijolos brancos da via. Era por meio de caronas que cruzava as maiores distâncias, já que ninguém ousava negar auxílio a uma maga. Ela sentou para esperar sob a sombra de um velho arco quebrado que ainda guardava algumas das características da arte tevinter – colunas grandiosas que apontavam para o céu, escamas representando cobras ou os Deuses Antigos, traços e formas que representavam feitiços conjurados e esquecidos.
A carroça levou alguns minutos para chegar, durante os quais Cornelia observou quem vinha em sua direção. Um homem na casa dos sessenta conduzia uma carroça com uma lona cobrindo a carga alta atrás dele. Poderia ser mais novo, mas seu rosto tinha muitas rugas e a pele parecia endurecida pelo trabalho ao sol. O animal que puxava a carroça de duas rodas era um baio de passos calmos que ergueu a cabeça ao notar a presença da maga e apontou as orelhas para cima. O condutor também se agitou, ajustando o chapéu para que o sol não lhe ofuscasse, e empertigando-se no banco da carroça quando viu a moça que lhe acenava.
O carroceiro puxou as rédeas e parou junto a Cornelia, tirando o chapéu e dando um sorriso educado. Seus olhos passaram do rosto de Cornelia para seu manto azul vibrante, para o brasão circular engastado nas ombreiras, e então para o cajado de madeira branca que ela mantinha em pé ao seu lado. Seus lábios se apertaram e os olhos estreitaram por um momento. Cornelia fingiu não notar. Um segundo depois, o homem a cumprimentou.
– Manhã bonita pra uma caminhada. – disse ele, olhando para o céu sem nuvens.
– Quente demais para o meu gosto. – respondeu Cornelia. – Para onde vai ?
– Lothering. – o homem gesticulou para a traseira da carroça. – Levando minha lã pra vender. Aceita uma carona?
Cornelia assentiu, e o homem ajeitou-se no banco para lhe dar lugar para sentar. Aceitando a ajuda de sua mão estendida, Cornelia sentou-se ao seu lado e descansou o cajado sobre os joelhos.
– Obrigada. Meu nome é Cornelia, a propósito. Maga do Círculo do Lago Calenhad.
– Samm, crio ovelhas. Bem diferente de ser um mago. – Samm balançou as rédeas e pôs a carroça em movimento. Ele olhava Cornelia com curiosidade. – Não que eu fosse saber como é ser um mago. Pra falar a verdade, acho que nunca tinha visto um de vocês.
– Então espero que eu cause uma boa impressão, em nome de todos os magos. – ela sorriu para Samm. – Nós não saímos muito da Torre. Até quando temos uma missão precisamos pedir permissão para o Primeiro Encantador, para o Cavaleiro-Comandante, assinar papéis... – Ela percebeu que o pastor de ovelhas a encarava sem entender, então desatou a explicar: – O Primeiro Encantador é o líder dos magos, e o Capitão-Comandante é o líder dos templários na Torre. – E acrescentou em um tom leve: – Eles garantem que fiquemos na linha.
– Graças ao Criador. – disse o homem, assentindo solenemente.
– Graças. – respondeu Cornelia, conforme mandava a tradição. Desde que saíra da Torre percebera como os fereldenianos podiam ser religiosos, muitas vezes mesmo sem frequentar o Coro.
– Meu pai falava de um mago que ele conheceu. A vila tinha ficado doente e os animais e as pessoas tavam morrendo de diarreia que não tinha chá que tratasse. Aí chamaram os magos, e eles descobriram que a água do poço tava podre. Maculado, foi a palavra que ele usou. Algo a ver com as das-trevas.
– As crias-das-trevas atacaram sua vila? – quis saber Cornelia, interessada na história. Ela lera sobre o Flagelo e as crias-das-trevas, sobre Guardiões Cinzentos e a Mácula, mas ouvir relatos pessoais era mais emocionante – principalmente quando quem contava não era um mago.
Mas Samm negou com a cabeça.
– Nunca nem chegaram perto. A madre falou que era um sinal do Flagelo que estava vindo e eles ficaram esperando, os homens arrumaram armas e as mulheres rezavam o dia todo. Mas não teve Flagelo nenhum, graças a Andraste.
– Graças. – repetiu ela, mas ainda queria saber mais e incentivou o pastor a continuar. – E como era esse mago que seu pai conheceu?
– Ah. – Samm hesitou, coçando a cabeça por baixo do chapéu. – Era homem mas acho que se vestia igual você, de vestidão azul. Ele ajudou a cavar um poço novo e ajudou com a doença do meu pai e do resto. – Seus olhos se iluminaram e Samm pareceu ter uma ideia. – Vocês cobram por isso?
– Pra tratar doenças?
– É. Eu tenho um negócio no pé, uma ovelha pisou e agora tá todo roxo.
– Posso dar uma olhada, para pagar pela carona.
Ele abriu um sorriso um pouco desdentado. Segurando as rédeas com apenas uma mão, descalçou um dos sapatos de couro, revelando um inchaço escuro no meio do pé. Cornelia não conseguiu evitar fazer uma cara feia frente ao cheiro que subiu.
– Está assim há quanto tempo?
– Uma semana, eu acho. Doía bastante, mas hoje parou.
– O tecido está necrosando. – Frente a um olhar ignorante, ela reformulou: – A carne está morrendo. Vou ver o que posso fazer.
Cornelia franziu o cenho e se abaixou para tocar o pé do homem. Ela repassou mentalmente as lições da Encantadora Wynne e se concentrou na sua fonte de magia. O centro da testa formigou, e a sensação percorreu seu braço até chegar às pontas dos dedos, que brilharam com uma luz dourada pulsante. Liberando a energia, Cornelia drenou o que restava de força vital da parte de cima do ferimento, muito cuidadosamente. O feitiço que usava poderia restaurar sua própria energia às custas da vida alheia, mas nessa intensidade, removeria o tecido morto para que a regeneração pudesse começar.
– É uma coisa esquisita, parece que tem algo subindo por dentro da perna. – disse Sam, mas não moveu o pé.
Cornelia assentiu, mas estava mais preocupada em limpar o ferimento.
– Você teria água? Preciso lavar o machucado.
– Aqui. – Ele alcançou um odre pesado. Cornelia derramou a água e o tecido morto foi carregado com ela, expondo músculos vermelhos e tendões claros por baixo.
– Agora vou começar a cura. Se você tiver nojo, acho melhor não olhar.
Samm deu risada.
– Não deve ser pior do que abrir um animal. Quero ver como isso acontece.
– Muito bem.
Cornelia liberou mais uma onda de energia, que dessa vez fez tinha o objetivo de gerar músculos e vasos sanguíneos. Trabalhando com calma ela podia canalizar a cura conforme a necessidade. Se fizesse direito não restaria nem mesmo uma cicatriz. Era diferente de tentar fazer às pressas, como os aprendizes treinavam nas simulações de combates.
Depois de um minuto, vendo músculos crescerem e a pele por fim se fechar, Cornelia deixou o pé de Samm com uma mancha de pele nova muito branca. Ele passou os dedos ásperos e arrepiou com o contato. Com uma voz impressionada, agradeceu a Cornelia.
– Parece pele de bebê. Nunca vi coisa igual. Eu não queria falar, mas cheguei a pensar que meu pé fosse apodrecer inteiro, só que você salvou ele. Que Andraste a ilumine, Cornelia.
A maga sorriu, satisfeita com o próprio trabalho. Curar feridas antigas e infeccionadas era mais difícil do que simplesmente fechar cortes. Pensando se teria mais trabalho do tipo em Lothering, ela se recostou para apreciar a viagem.
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Ossos Quebrados [Dragon Age] [Completo]
Fantasy*Baseado na série de jogos Dragon Age* O mundo esteve perto do fim quatro vezes, e o quinto Flagelo se aproxima. Hordas de crias-das-trevas abrem caminho pelas profundezas da terra trazendo consigo morte e desolação. Diante dessa ameaça uma maga, um...