Profundezas - Parte VIII

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Hati encarava a casa da curandeira como uma armadilha. O telhado curvado como o casco de um navio poderia ser a jaula, e a porta escancarada emanando o cheiro do café da manhã era o chamariz. Assim que entrasse, algo o pegaria, e ele não fazia ideia do que. Não fazia muito tempo que o dia havia raiado, mas Hati estava acordado há mais de uma hora. Tivera sonhos, ou melhor, pesadelos, um atrás do outro. Fora mastigado pelas mandíbulas de imensas feras, escondeu-se de multidões canibais e cedeu ao deleite de banquetes que daria tudo para esquecer. Acordou com um rombo no estômago, uma fome como nunca sentira na vida toda: a de alguém que luta a cada dia para ter o que comer, e que muitas vezes vai para a cama sem nada na barriga. Mas a opressão que permanecia dos seus pesadelos era tamanha que precisou pegar um bocado do que Sara preparava e sair pela porta o mais rápido possível, antes que o sentimento ruim o esmagasse.

O ar dentro da casa estava quente e esfumaçado, e o contraste com o frio da manhã do lado de fora era bastante agradável. Olhar a casa de longe também era um alívio, pois a escuridão na soleira da porta a fazia parecer com a entrada de uma caverna. Ele sentou sobre um cercado a dez passos e lá ficou, pegando sol e aguardando os outros se juntarem a ele.

Mas a longa espera somava ao seu desconforto, pois os moradores da vila davam início aos seus afazeres no vale abaixo e lançavam-lhe olhares curiosos ou desconfiados. Talvez logo um deles galgasse a colina para tirar satisfação com o estranho que tanto os observava, afinal de contas o povo de Poçofrio ainda não sabia nada sobre os hóspedes da curandeira e as circunstâncias que os trouxeram.

Ele poderia sair de onde estava empoleirado. Voltar para dentro da casa estava fora de questão, mas havia muito a explorar nos arredores. O falcão que sobrevoava o vale sugeria a presença de boa caça por perto, então haveria com o que se ocupar até que os outros levantassem. Sentia-se, contudo, compelido a observar o poço. De onde estava conseguia ver parte da parede interna, cuja textura, mesmo à distância, sugeria uma formação rochosa natural. A maioria das casas de um cômodo só construídas em volta caberia facilmente dentro do poço, e não duvidava que várias poderiam ser empilhadas do fundo ao topo. Quando estivessem todos ali, gostaria de dar uma boa olhada — talvez até mesmo usasse novamente o anel, para ver se sentiria o que sentira antes —, mas não o faria sozinho.

Aquela sensação fora a mais entranha que ele já sentira. Era como se tivesse desenvolvido um novo sentido, um formigamento logo abaixo da pele, uma vibração que o percorria por inteiro e que, de alguma forma, apontava para o fundo do poço. Havia algo lá, ou alguém, e a vibração era como um chamado para descobrir o que havia sob as águas. Hati queria sentir aquilo novamente, talvez como parte desse chamado, talvez por uma curiosidade honesta, mas não o faria sem que houvessem outros por perto para salvá-lo do que quer que acontecesse.

E, quase que para atender seus desejos, Sir Maron saiu pela porta. Vestia a armadura, mas onde sua pele estava à mostra tinha manchas vermelhas que se transformavam em hematomas. Tinha também olheiras evidentes, mas sua disposição não era de alguém doente, e seus passos firmes até Hati não continham resquício da debilidade recente.

Logo atrás dele vinha Adrian, terminando de afivelar o cinto e a bainha. Ele sim parecia cansado, e tinha uma maçã inteira na boca. Assim que arrumou a bainha da espada, arrancou um pedaço da maçã com voracidade, e começou a mastigar sem parar.

O estômago de Hati roncou. Talvez precisasse voltar para dentro da casa, se não quisesse passar fome até a hora do almoço.

— Bom dia, Hati. — disse o templário. Deu dois tapinhas em suas costas e parou ao seu lado, voltado para a vila e poço em seu centro. — Pelo Criador, onde viemos parar?

— Sara me disse que chamam a vila de Poçofrio. — respondeu Hati, ainda o olhando. Era quase um milagre que estivesse em tão boas condições. — Fico feliz por vê-lo em pé e disposto, Sir Maron. O veneno da flecha quase levou a melhor sobre você.

Ossos Quebrados [Dragon Age] [Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora