Nos Ermos Korcari, seguir uma presa não era tarefa fácil. Quando a geada da noite anterior destruía a trilha seguida há dias, ou os rastros paravam diante de uma lagoa podre e ressurgiam somente na margem oposta, um caçador precisava contar com mais do que somente sua visão. Os sons das aves e insetos na selva diziam muito, e a ausência de qualquer barulho dizia ainda mais. O cheiro da urina dos predadores mostrava aonde não se aventurar, e o cheiro do sangue de um javali alvejado indicava um caminho promissor, mas que deveria ser seguido com cautela. Se o caçador tivesse bons instintos teria algo com o que encher a barriga no fim do dia, e não seria tragado por mandíbulas de um crocodilo ou por um atoleiro amaldiçoado.
Tendo vivido trinta anos no pântano gelado e hostil, o caçador achava entediante seguir um mercador a cavalo pelo conforto da Estrada Imperial em Ferelden. Apesar de ele próprio não viajar sobre a via elevada, caminhar ao lado dela era muito mais fácil do que qualquer trajeto através dos Ermos. Não havia armadilhas ou predadores para se evitar, e o mercador, sua presa, não era um anão exatamente atento.
Um falcão voava alto no céu, circundando-o como se a própria ave quisesse mergulhar e abatê-lo e, enquanto viajava sob a estrada, era a melhor indicação de que o anão continuava por lá. De tempos em tempos o caçador subia até a estrada por uma das rampas e espiava sua vítima. A carroça do anão era alta e colorida, impossível de perder de vista, e puxada por duas mulas velhas e preguiçosas, tão desatentas quanto o dono. Elas frequentemente conduziam a si próprias rampa abaixo para pastarem ou se refrescarem em um riacho, e o mercador pouco fazia para colocá-las de volta na estrada além de reclamar aos quatro ventos. Aqueles muitos momentos fora da estrada seriam perfeitos para o caçador matá-lo com uma flecha e nada mais, não fosse sua companhia: o miserável viajava ao lado de templários e uma bruxa.
Eles se juntaram ao anão poucas horas depois do caçador localizá-lo, enquanto ainda estudava sua presa. Haviam acabado de passar por uma vila, e meia dúzia de camponeses andava com eles. Contudo, enquanto os camponeses debandaram depois de uma hora, tomando caminhos sinuosos que davam em seus pastos cheios de ovelhas, os outros permaneceram com a carroça, decididos a viajarem com ele.
Quem os liderava era um templário em sua típica armadura, completa exceto o elmo. Era o mais vigilante do grupo, tinha marcas de um combate recente e sua mão frequentemente tocava o punho de sua espada embainhada, como se sentisse o perigo no ar e quisesse garantir que não estaria indefeso. Outros dois rapazes caminhavam ao seu lado, um brutamontes vestindo uma malha de aço e outro mais esguio carregando um arco-e-flecha. O caçador não tinha certeza se eles eram templários ou somente aprendizes, mas sabia quem, ou melhor, o que era a mulher ruiva que os acompanhava. Os ignorantes de Ferelden a chamariam de maga do Círculo, mas, para alguém nascido no pântano e criado com histórias de horrores que espreitam na noite, a ruiva não passava de uma bruxa, e bruxas deviam ser temidas.
Esse era o único empecilho para o caçador terminar seu serviço e ir coletar a recompensa. O falcão continuou nos céus durante todo o dia, lembrando-o de seu dever, mas ele não arriscaria se aproximar mais. A bruxa poderia muito bem ter olhos nas costas, ouvir os sussurros das árvores ou escutar seus pensamentos enquanto ele achava estar escondido, e isso acabaria em nada além de uma morte horrível para ele. Se fossem apenas templários, uma flecha envenenada disparada de dentro da floresta resolveria seu problema. Mas contra templários aliados a uma bruxa ele não tinha nada que poderia fazer – principalmente porque, até onde sabia, templários deveriam matar bruxas, e não viajarem com elas. Havia algo errado com aquele grupo, e o caçador não era alguém de cair em armadilhas por vontade própria.
E, ao final do dia, quando pararam para acampar, o caçador não tinha nada além do esboço de um plano na cabeça. Ele esperou, sentado sob a escuridão absoluta de um tronco caído, perguntando-se se o falcão que o acompanhara durante o dia também estaria espreitando como ele, ou se já havia se recolhido para seu ninho, onde quer que fosse. A bruxa acendeu a fogueira com um estalar de dedos, provocando-lhe um arrepio que ele temia tê-lo denunciado, mas ninguém olhou na sua direção. Os dois rapazes buscaram água em um rio que desaguava no Calenhad, não muito longe dali, enquanto o mercador conferia suas cargas, olhando por cima dos ombros como alguém que espera a morte. Era um anão, e anões tinham instintos mais aguçados que os humanos. Três vezes ele conferiu um bolso interno de sua jaqueta, denunciando o local onde guardava a preciosidade que o caçador, se tudo corresse bem, logo teria em mãos.
Levou menos tempo do que ele esperava para irem para suas camas. O anão estava animado para contar e ouvir histórias dos viajantes, mas eles eram um tipo soturno e que não falava muito, e logo a conversa morreu. Quando se entediaram com a fogueira crepitando, recolheram-se para suas barracas, todos exceto a bruxa. Talvez ela não precisasse dormir. Talvez ela enxergasse mesmo com olhos fechados, e o caçador nunca teria uma chance de se aproximar sem ser visto. Quando ele achava que sua missão estava perdida, a bruxa deu um bocejo, levantou e foi acordar o garoto arqueiro.
Com o rapaz fazendo guarda, o caçador estava mais confortável. Por ser um arqueiro certamente tinha bons olhos, mas para encontrá-lo durante a noite, camuflado e absolutamente silencioso, seria preciso mais do que olhos. O caçador rastejou até uma rocha atrás de seu acampamento, uma dentre várias enormes pedras entre as quais as tendas foram montadas, e esperou, sempre escondido na escuridão. Mais uma hora passou, e então outra, mas ele era paciente, e eventualmente o anão saiu de dentro da carroça e anunciou ao rapaz que precisava mijar.
Aquele era o momento de pegar sua presa.
***
Olá, leitores!
Espero que tenham gostado de mais esse capítulo. Se gostaram, deixem um voto de incentivo :D
Dessa vez eu decidi dar o ponto de vista para um personagem que não fosse um dos protagonistas. O que acharam disso? Legal, chato, indiferente? Deixem um comentário pra eu saber o que vos agrada :)
Até a próxima semana o/
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Ossos Quebrados [Dragon Age] [Completo]
Fantasy*Baseado na série de jogos Dragon Age* O mundo esteve perto do fim quatro vezes, e o quinto Flagelo se aproxima. Hordas de crias-das-trevas abrem caminho pelas profundezas da terra trazendo consigo morte e desolação. Diante dessa ameaça uma maga, um...