Demônios - Parte II

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Morreria sem saber para onde iria sua alma. Uma garra curvada enganchou sua panturrilha, rasgou o tecido úmido e drenou sangue. Ele revidou com a espada, arquejando e vendo diante de si a respiração condensar-se e desaparecer. O demônio consumia o calor do ar, resfriando-o a cada segundo em que se aproximava. Um conjunto de costelas no chão fechou-se como uma armadilha de caça, enterrando as pontas quebradas em seu tornozelo. Ele cambaleou para a frente, usando a espada como apoio para não cair. Pisoteou os ossos com o pé livre até se romperem e esfarelarem. A tocha fazia mais fumaça do que fogo e seu calor, mesmo mantida próxima ao rosto, não esquentava mais. O demônio consumia a temperatura das chamas e a própria madeira desfazia-se em fagulhas, ameaçando apagar em breve.

— Vai! — Sir Maron gritou em seu ouvido, empurrando-o para a frente com o escudo.

Adrian cambaleou, acertando mãos e garras que surgiam das paredes em volta, quebrando crânios com a ponta da lâmina, saltando por cima de mandíbulas que ameaçavam tragá-lo e de esqueletos serpenteantes que queriam arrastá-lo para as profundezas. Dentes humanos o morderam na canela, um mero crânio empilhado sobre vértebras desiguais mas que possuía força para prender-se e não largar. O crânio sugou sangue e o demônio começou a consumi-lo. A voz ecoou por todo o túnel interminável:

— Fiquem! Fiquem para o meu banquete!

Não era masculina ou feminina, apenas monstruosa, um vácuo sugando ar e emitindo palavras. Ela falava através do próprio ar, cada vez mais rarefeito mesmo que seguissem a passos largos para a saída. Às vezes seus suspiros de prazer ecoavam de queixadas imensas, difíceis de quebrar mesmo com o aço temperado. Outras vezes, seu riso emanava dos bicos quebradiços de aves ou do friccionar e raspar de dentes rolando pelo chão sem músculos ou membros para movê-los. Adrian pisou em um montículo de terra salpicado de fragmentos brancos, o peito estufando dolorosamente ao máximo a cada fôlego. O teto raspava em sua cabeça e a mão que segurava a tocha apoiava-se na parede.

Olhou para trás por apenas um momento. Sir Maron dissera para não fazê-lo, para avançar sem parar, mas o próprio templário estava ficando para trás. Seu escudo segurava o impacto de uma dezena de punhos em braços longos vindos da escuridão além. A luz da tocha não chegava aonde devia, o demônio a consumia com seus olhos vazios. A Coisa Faminta os perseguia desde a grande câmara, a última caverna, dando vida e formas grotescas a esqueletos, juntando-os com sua criatividade que desejava apenas consumir. O demônio tinha fome, ele era a própria fome encarnada nos ossos cuja carne devorara até não restar mais nada. Mesmo quebradiços, golpeavam com força. Mesmo sem tendões, moviam-se com agilidade. Mesmo sem uma alma, o espírito da fome tinha um único desejo insaciável.

O chão sob Adrian afundou e ele afundou antes que pudesse reagir. O monte de ossos fechou-se até o joelho, perfurando-o, mastigando-o. Adrian gritou, enfiando a tocha nos fragmentos alvos, mas apenas serviu para lascar a madeira, diminuindo ainda mais a vida útil da sua única fonte de luz. O túnel não tinha bifurcações ou becos sem saída, mas lutar contra o demônio seria impossível na escuridão. Ele enfiou a espada uma, duas, três vez no chão, sem surtir nenhum efeito. Sir Maron trombou em suas costas, arfando, sangrando, gritando para que corresse.

— Estou preso! — Adrian gritou de volta, o choro embargando sua voz. Morreria e sua alma seria devorada, seu corpo faria parte da coleção do demônio e a fome seria o que lhe restaria para toda a eternidade.

Os olhos do templário fixaram-se na perna presa pelo solo pulsante. O sangue vertia para a superfície em pequenas bolhas que se rompiam em contato com o ar. Adrian cravou a espada mais uma vez, afundando-a meio metro no solo, e não conseguiu tirá-la de lá. A chama tremeluziu, cada vez mais fria, cada vez mais escura, e o templário começou a recitar:

— Os justos diante dos exércitos como a rocha frente à maré: Inabaláveis, enraizados em sua fé. — Ele cravou sua espada junto à de Adrian, a voz cadenciada entoando o Cântico da Luz: — E as hostes demoníacas romperam-se nos escudos pela mão do Criador!

A terra e os ossos silenciaram por um segundo. A tocha brilhou com intensidade renovada, a opressão cessou como se soprada por uma brisa amena. O templário o puxou para fora do chão e assim que sua voz cessou o chão voltou a serpentear e pulsar, as mandíbulas voltaram a bater e o demônio voltou a profanar:

— Andraste está morta, corpo e alma consumidos pelo fogo, e assim será com vocês!

Um novo empurrão de Sir Maron fez Adrian correr novamente. Claudicava, mas sabia que era possível: havia um poder real nos templários, um poder vindo do Criador capaz de parar um demônio com as palavras sagradas do cântico de Andraste! Se seus corpos faltassem em força, seus espíritos continuariam a perseverar.

— Adrian! — a voz de Cornelia os alcançou ao mesmo tempo em que viram a luz. — Sir Maron!

— Estamos conseguindo! — Adrian vibrou, acelerando. Não havia mais ossos surgindo do chão, o frio que queimava sua pele e congelara a água da roupa ficava para trás e o templário parecia capaz de segurar as investidas da Coisa Faminta. Garras de ossos e presas afiadas quebravam-se contra seu escudo, lascavam no aço da espada a cada investida frustrada.

Os dois pararam lado a lado na plataforma diante da água. Dezenas de cabeças os assistiam do alto do poço, uma dúzia de cordas pendurada na borda. O cabelo ruivo de Cornelia destacava seu rosto entre a multidão. Ela esticou o cajado por cima da borda de pedra e um pedaço do muro de pedra disparou na direção dos dois. Adrian e Sir Maron abaixaram-se instintivamente, a rocha passou por cima de suas cabeças e atingiu o demônio da fome. Os ossos destruídos desapareceram túnel adentro, espalharam-se em fragmentos jogados para dentro d'água e, em um satisfatório silêncio, cessaram os ataques.

— Eu o matei? — gritou ela, incrédula.

— Não! — Sir Maron guardou sua espada, pendurou o escudo nas costas e saltou para a água, e Adrian foi logo atrás, largando a tocha na terra seca.

Os dois alcançaram as cordas com braçadas vigorosas e imediatamente começaram a escalar. Os braços de Adrian ardiam, escorriam sangue que diluía na água que o encharcava. Acima deles, as mãos de Cornelia e brilhavam com energia curativa, antecipando sua chegada. Os rostos dos aldeões, iluminados de esperança e heroísmo, escureceram subitamente.

— Cuidado! — gritou alguém.

Adrian não teve tempo de olhar e foi puxado para o poço escuro.


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Olá, leitores!

Espero que tenham gostado de mais este capítulo e que estejam ansiosos pelo próximo! Até mais o/

Ossos Quebrados [Dragon Age] [Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora