Uma gota solitária de sangue escorreu pelo antebraço de Sara até a mão que brandia seu cajado, então evaporou em um cintilar rubro. Fome rugiu, estremecendo, e o interior da casa esfriou como no cair da noite. Cornelia sentiu o fluxo de ar puxá-la, fazendo esvoaçar o manto azul do Círculo. Panos e cobertores soltos passaram por ela em um voo desconcertante, obscurecendo o demônio. Os adereços de ossos e dentes pendurados nas vigas rodopiavam. O interior da casa estava mais escuro do que nunca, mesmo que as fracas chamas da fogueira e a trêmula magia de Cornelia fizessem frente às trevas.
— Você mentiu! — o demônio sibilou. — Tentou me enganar e vou consumi-la por isso!
Tentáculos escuros emergiram do interior da Fome e conectaram-se em um piscar de olhos com Sara e Cornelia. A maga sentiu as pernas cederem sob uma nova onda de fome e fraqueza, mais intensa do que a anterior. Sentindo o desespero apertar-lhe o peito, deixou que a luz do cajado atenuasse e concentrou-se em atacar o demônio. Se pudesse fazê-lo soltá-las, poderiam se salvar. Os braços tensionaram e a cabeça ficou mais leve quando a energia caótica do Turvo foi canalizada através dela, concentrada no cajado e dada forma através de sua força de vontade. Ela puxou com sua mente e um pedaço de terra desprendeu-se do chão, sólido como uma rocha, e atingiu o centro do corpo do demônio.
O projétil explodiu contra o monstro de ossos em uma chuva de pedregulhos. Duas costelas se romperam mas o impacto não deteve o demônio, que serpenteou no ar e avançou sobre Cornelia. Sua longa espinha parecia balançar com o vento em seu movimento sinuoso, as costelas dispostas por sua extensão abrindo e fechando como garras. A Coisa Faminta assomou sobre Cornelia, cobrindo-a com seu corpo, prestes a fechar nela como uma armadilha de caça, quando um raio azul brilhante atingiu seu flanco com um estrondo e o jogou contra um pilar.
Sara juntou-se a Cornelia com o rosto vermelho e as mãos manchadas de sangue. O cajado retorcido apontava para a frente, onde, entre as sombras espessas, o demônio enrolava-se como uma cobra.
— Precisamos lutar juntas contra a Coisa ou ela vai vencer. — falou, decidida apesar da respiração ofegante. — Não lhe dê calor nem nada que possa consumir. Quebrar seus ossos vai somente atrasá-la, nao derrotá-la de vez.
— Precisamos atingir diretamente o espírito — completou Cornelia, recordando as lições na Torre do Círculo. —, ou ele poderá refazer seu corpo.
— Isso mesmo. Agora lance uma luz sobre ele.
Cornelia atendeu o pedido, confiando que a curandeira, que fora tão ardilosa em seus reais objetivos e alianças, estaria do seu lado nessa situação. Afinal, a vida das duas, e de todos os outros do lado de fora da casa, corria perigo, e Sara certamente enfrentaria o demônio se fosse para proteger a filha. Então, com essa esperança que tentava transformar em certeza, conjurou uma nova luz.
E, quando a ponta de madeira transformou-se em uma estrela, a Fome atacou.
Sara gritou, conjurando um relâmpago que estalou pelo ar e atingiu em cheio a Coisa Faminta. Fragmentos de ossos dispararam para todos os lados, até mesmo as atingindo, e o crânio pesado do demônio tornou-se negro de fuligem.
Ele, contudo, não parou sua investida, cruzando o espaço que os separava em meros segundos. Cornelia ergueu as mãos e o cajado, arrancando outra esfera do chão com sua magia telecinética. Dessa vez, Fome esquivou-se em um giro e conseguiu se posicionar em meio às duas.
A maga do Círculo e a apóstata se encolheram antes mesmo que os golpes viessem, erguendo os cajados na frente do corpo. Cornelia foi mais rápida e a madeira estalou quando quatro costelas danificadas acertaram a haste, empurrando-a com força para trás. E enquanto ela tentava recobrar o equilíbrio, viu o sangue de Sara jorrar ao receber uma mordida das pesadas mandíbulas da Fome. Seu cajado faiscou com energia elétrica que a princípio arqueou através dos ossos do demônio, mas que se dissipou quando sua magia foi drenada.
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Ossos Quebrados [Dragon Age] [Completo]
Fantasía*Baseado na série de jogos Dragon Age* O mundo esteve perto do fim quatro vezes, e o quinto Flagelo se aproxima. Hordas de crias-das-trevas abrem caminho pelas profundezas da terra trazendo consigo morte e desolação. Diante dessa ameaça uma maga, um...