Profundezas - Parte VII

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— Hati? Ei, Hati, o que foi?

Adrian precisou estalar os dedos diante do seu rosto para tirá-lo do transe. Devagar, Hati tirou os olhos da densa escuridão do poço, piscando e esfregando o rosto confuso.

— Eu ouvi... — ele hesitou, procurando palavras. — Eu senti algo, alguma coisa lá embaixo, não sei como descrever. Você não sentiu?

Adrian balançou a cabeça, inclinando inconscientemente o corpo para trás. Assim que pôs o estranho anel no dedo, Hati perdeu-se em seus pensamentos e, para Adrian, isso cheirava a magia. Poderia estar enfeitiçado, dominando a mente de seu companheiro com algum feitiço profano, e o pensamento causou-lhe um intenso calafrio.

— Não acha melhor tirar esse anel e voltarmos lá pra cima?

Hati baixou o olhar para a própria mão, demorando a entender.

— O anel? Ah! Sim, claro. — Ele removeu o anel sem hesitar e, assim que o fez, parou para olhar em volta e escutar. — Parou. A sensação sumiu.

Adrian o conduziu para longe do poço puxando-o pelo braço. Podia ser impressão sua, mas havia um vento frio que soprava para o centro da vila, na direção do fosso, e ele queria se afastar o máximo possível daquilo. Ele e Hati tomaram a estrada de volta à casa da curandeira e, ao longo de todo o caminho, Adrian fez preces em silêncio para Sir Maron estar recuperado de sua aflição. Ele realmente queria que Sara tivesse boas intenções e que o sonho dela tivesse sido uma dádiva do Criador, mas seus encontros com o sobrenatural aumentavam cada vez mais sua desconfiança com tudo que envolvia magia e os poderes além desse mundo. Talvez isso fosse a base de ser um templário, no fim das contas. Ou talvez fosse o princípio da paranoia.

Mabel, a mabari de Sara, ergueu-se para deixá-los passar pela porta. Era tão grande que em pé seria mais alta do que Adrian, e provavelmente pesava mais do que Cornelia, talvez até mais do que Hati. Os padrões pintados em suas costas, os kaddis, lembravam-no nuvens e redemoinhos e contrastavam com certa beleza com seu pelo marrom-escuro.

Ela deu dois passos para fora da casa, esperou que entrassem e fechou a porta com o focinho. Bjarka levantou-se de sua cadeira e trancou a porta com a chave, fez um afago em Mabel e as duas sentaram-se ao lado da lareira.

— Ela é mais esperta do que muita gente. — comentou Sara, reparando que Adrian observava sua cadela. A curandeira separava cobertores para as visitas do meio de uma pilha bagunçada com metade da sua altura.

— Eu nunca tinha visto uma mabari tão de perto. Às vezes algum passava por Lothering, mas a mãe dizia pra eu ficar longe de cães grandes como esse. Acho que ela os via mais como lobos.

Mabel bufou, erguendo as orelhas, e Bjarka contorceu a boca com desgosto. As duas pareciam ter um temperamento similar: o de um cão de caça.

— Lobos e mabaris não tem nada a ver! A Mabel não é um animal selvagem, templariozinho.

Adrian ergueu as mãos na tentativa de apaziguá-la.

— Não disse que concordava com isso! Era só o que minha mãe dizia, mas dá pra ver que ela estava errada.

— Adrian. — Cornelia o chamou, para seu alívio desvencilhando-o de mais uma discussão com Bjarka. — Venha ver Sir Maron.

O templário estava deitado sobre uma esteira no chão, próximo a um fogo que esquentava o caldeirão de Sara. Cornelia estava terminando de dar em sua boca o elixir da curandeira. Seu rosto estava ficando corado e sua respiração, antes quase imperceptível, agora levantava o cobertor sobre seu peito.

— Está melhorando. — murmurou, enchendo-se de esperança. Tivera sérias dúvidas se seu mentor sobreviveria ao envenenamento, mas agora tudo parecia que ficaria bem. Ele se virou para a curandeira, que assistia a cena de uma certa distância, e achou que lhe devia desculpas. — Obrigado, Sara. Não devia ter duvidado de você.

Ela apenas balançou a cabeça, então indicou os leitos arrumados para eles.

— Está na hora de vocês descansarem.

— Aproveitem para dormir enquanto eu cuido de Sir Maron. — disse Cornelia. — Quando levantarem pela manhã será a minha vez.

Nem Adrian nem Hati discutiram. Os dois deitaram-se sobre as grossas peles que serviram de colchão, cobrindo-se com mantas finas e aproveitando o calor emanando do fogo central. O sono veio fácil, mas agitado, cheio de sonhos em sequência, sem que ele acordasse entre um e outro.

O primeiro era um banquete. Adrian estava de volta à Lothering, em uma festa com toda a vila. Sua mãe, seus amigos e mesmo os templários sentavam-se em torno de uma mesa a céu aberto, sobre a qual havia um manjar. Todos pareciam contentes, conversando e rindo enquanto arrancavam com as mãos pedaços de carne, abocanhavam as massas até mal conseguirem mastigar e lavavam as gargantas com vinho direto de ânforas, até escorrer pelos cantos da boca.

— Sirva-se, meu filho. — disse sua mãe, empurrando os pratos na sua direção. — Esse banquete todo é pra você.

Adrian enfiou as mãos em um caldo espesso e fumegante à sua frente, que emanava o cheiro de batatas e especiarias. Lambeu os dedos e seu estômago roncou, contorcendo e doendo. Parecia que não comia há dias. Assim que começou a comer não parou mais, mas sua fome só aumentava. Arrancou a carne dos ossos, sugou-lhes o tutano, deglutiu cada porção que encontrava até faltar ar. Quando deu por si, o banquete havia terminado, e não restava nada, nem mesmo ossos sobre a mesa, e ele ainda tinha fome.

No sonho seguinte Adrian caminhava pela Estrada Imperial, mas a paisagem era muito diferente daquela com que estava acostumado. Não havia Lago Calenhad à sua esquerda. As águas estavam secas e um fundo de argila rachada era tudo o que restava. Do outro lado, as árvores estavam reduzidas a ramos secos, dedos esquálidos apontando para o céu, balançando e rangendo ao ritmo do vento. Não havia aves ou roedores, nem mesmo insetos nas reentrâncias das rochas e, naquele momento, tudo o que Adrian queria era algo para comer. Qualquer coisa.

Olhou em seus bolsos, procurou na mochila, mas os encontrou cheios apenas de areia. Sua espada estava na bainha, mas não tinha como obter comida com ela — não havia nada para caçar, ninguém para roubar. Sua fome crescia e crescia, e com ela crescia o desespero. Seus braços estavam magros, seu rosto estava encovado, e foi com alívio que recebeu uma lufada de um cheiro delicioso, uma promessa de alívio para sua inanição. Seguiu o rastro do aroma para além da Estrada Imperial, embrenhando-se na mata que arranhava os braços e o rosto até chegar a uma clareira. Lá, nos fundos de uma cova rasa, um corpo jazia abraçando os joelhos, e o cheiro de seu sangue era tão convidativo quanto um manjar.

No próximo delírio, a mandíbula de Adrian estava larga e forte como de uma queixada, seus dentes não cabiam em sua boca e sua língua inchada escorria saliva. A fome o consumia por dentro mais uma vez, obrigando-o a perseguir as pessoas pela rua. Em outro sonho, ele próprio precisava se devorar para não falecer, e a dor mesclava-se ao alívio da saciedade. No outro sonho nadava em um mar de ossos. No seguinte era alimentado como um animal de abate e crescia sem parar. Quando o último sonho terminou o dia já estava claro a luz do sol entrava pela porta principal, e ele estava faminto.

— Pronto para levantar? — perguntou-lhe Sir Maron, e Adrian sentou-se de supetão. Seu mentor estava em pé, sorrindo a despeito do aparente cansaço, e sobre sua cabeça havia mandíbulas de animais, penduradas por vigas em todo o teto. — Temos muito a fazer aqui em Poçofrio.

***

Olá, leitores! O que acharam desse capítulo? O que será que desencadeou esses sonhos em Adrian, e qual será o mistério de Poçofrio? Deixem suas opiniões nos comentários, e seus votos também :)

Até a próxima semana!

Ossos Quebrados [Dragon Age] [Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora