Obrigada, senhorita Hills

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Já havia anoitecido quando chegamos em casa, decidimos jantar. Mika tinha ficado quieta durante todo esse tempo, parecia presa em seus próprios pensamentos. Eu queria dizer que sinto muito, e que talvez ela não passasse por isso, se eu tivesse ficado no orfanato, mas eu não conseguia dizer nada. Apenas remexia a comida de cabeça baixa. A fome não veio, e a preocupação tomava conta dos meus pensamentos. Mike recolheu os pratos e lavou a louça, como sempre comecei a secar os pratos.

- Mika eu... - Tentei começar, mas travei.

- Não precisa dizer nada. Você não tem culpa de nada disso.

- Mas você veio atrás de mim, porque minha mãe pediu. Se ela não tivesse me abandonado...

- Nós não sabemos o que aconteceu...

- Sabemos sim, admita Mika, sua amiga, abandonou a própria filha com o Satã, sem nem olhar para trás.

Mika respirou fundo, cerrou os punhos apoiando na pia.

- Eu aceitei ficar com você, por que sei do que seu pai é capaz de fazer para conseguir o que quer. É, agora ele quer minha cabeça, por que estou com a filha prodígio dele. E quer saber Catherine, eu não me arrependo nem por um segundo. Ache o que quiser da sua mãe. Mas eu conhecia Emma e ela JAMAIS faria isso. Eu acredito nela, e é por ela que eu a protegerei.

- Me desculpe eu não... - Encolhi os ombros. - Eu só queria entender, o que aconteceu...

- Eu sei. Mas nem tudo tem uma explicação concreta. E temos que conviver com isso.

Houve um momento de silêncio entre nós.

- Acha que outros virão. - Murmurei.

- Claro que sim. Mas estarei preparada. Como eu disse, ninguém tocará em você. - Mika colocou uma mecha solta dos meus cabelos para trás, dando um sorriso torto.

Ela não parecia bem, os olhos sombrios meio perdidos. Ela estava abalada, mas era orgulhosa demais para admitir.

Horas mais tarde, lá estava eu me virando de um lado para o outro na cama se esforçando para dormir, apesar do cansaço minha mente estava a pleno vapor as lembranças da mamãe era doloridas e a cena na loja ainda fazia meu estômago revirar, o medo nos olhos de Mika com o rosto sangrando contra o vidro. A culpa era minha, ela cuidou de mim, me deu um lar. E agora era assim que seria paga? Com violência? Não podia permitir isso, eu precisava fazer alguma coisa. Pensei nas palavras da bruxa " seu pai é capaz de fazer para conseguir o que quer". Aquilo fez com que arrepios subissem minha espinha, o que o diabo não faria para ter sua criação de volta. Me levantei abruptamente e caminhei até o espelho, eu ainda parecia humana, não tinha nada de sobrenatural em mim. Mas algo dentro do meu coração se apertou, talvez fosse melhor que...eu partisse.

O pensamento se intensificou, arrumei uma mochila com tudo que eu achava que ia precisar, roupas, dinheiro, e até mesmo dois cristais da Mika, eu esperava que ela não desse falta deles. Passei em frente ao quarto dela, e conferi se realmente dormia. Ela estava apagada, a admirei por um instante. E sussurrei um "Obrigada, senhorita Hills" . Era assim que eu a chamava assim que a conheci. Saí da casa, e suspirei. O medo fazia meus joelhos vacilarem, mas eu não podia deixar que nada acontecesse com ela. Não depois de tudo que fez por mim. Lembrei do caminho que fizemos até a cidade, olhei para a garagem, e considerei pegar o impala uma tentação dessas quase me dominou. Mas, eu não podia. Não era certo. Sacudi a cabeça espantando a ideia e segui andando pela estrada, o breu da madrugada ajudava a disfarçar minha presença mas ao mesmo tempo me causava calafrios. Todos os filmes de terror que eu tinha assistido agora não estavam ajudando a me concentrar. Apressei o passo para ir para as luzes da cidade. Demorou mais quarenta minutos que pareceram anos, até finalmente eu vislumbrar o centro da cidade. Caminhei pelas ruas pouco movimentadas, quase ninguém andava por ali aquela hora da madrugada. Mas alguns postos de gasolina e bares ainda estavam abertos. Minha barriga roncou, fazia um bom tempo desde o jantar, pensei. Fui até o posto e entrei na lojinha, onde só eu e o balconista estávamos. Peguei dois biscoitos e uma lata de refrigerante, fui até o caixa para pagar.

- 10 dólares. - Disse o senhorzinho.

- Isso é roubo. - Murmurei pagando o homem e saindo entediada.

A praça estava vazia, não havia se quer uma pessoa andando por ali, apenas as luzes iluminavam o lugar. Me sentei perto da fonte desligada e comecei a comer. Estava frio então fechei a jaqueta preta e arrumei a touca azul na cabeça. O sentimento de estar sozinha nunca tinha sido tão familiar quanto agora parecido com o de quando minha mãe se foi. Terminei de comer e peguei o celular para pesquisar uma rodoviária mas próxima. Encontrei uma a quatro quadras dali. Suspirei me arrependendo de não ter roubado o carro de Mika.

De repente as luzes da praça piscaram tremeluzindo, um silêncio absorto tomou o lugar, algumas luzes acabaram queimando e me assustando com os pequenos estouros das lampadas. Tinha mais alguém ali, eu podia sentir sua presença, mas ainda não conseguia vê-lo. Me levantei e cerrei os punhos, não fazia a menor ideia do que estava fazendo, mas não podia mostrar medo, não quando eu realmente estava sozinha no meio de uma praça a quilômetros de casa. Um vulto passou por trás, me virei para ver mais não estava mais lá.

- Eu estou aqui. - A voz entretida me assustou verdadeiramente, me virei de volta e lá estava um homem.

Ele era mais baixo que o careca, tinha cabelos curtos em corte militar, meia idade, sobretudo preto e sapatos de luxo, ele lembrava donos de banco poderosos, mas que gostavam de ser discretos. O rosto fino, e os traços fortes, seus olhos tinham um tom castanho claro.

- Quem é você?

- Meu nome é Crowley, muito prazer querida.

- O que você quer Crowley?

- Não é o que eu quero, é o que meu patrão quer. - Ele deu de ombros. - Eu queria mesmo estar em algum motel com as mulheres humanas, sugando a vitalidade delas. Mas, negócios vem primeiro.

- Lúcifer. - Deduzi.

- Exato! Garotinha esperta.

- Muito corajoso da parte dele, mandar os bichinhos de estimação atrás da filha.

Pude ver uma sombra de fúria contida se transformar em um meio sorriso audacioso.

- É você puxou mesmo a ele. Tão repugnante quanto. - Crowley deu um passo a frente, e eu me afastei.

- Quer saber, diga ao meu pai, que se ele quiser me ver que venha pessoalmente. - Tentei manter a cabeça erguida, mas os olhos de Crowley ficaram pretos com os do demônio da loja.

- Sinto muito querida, mas não é você quem faz as regras.

Crowley pegou meus braços pronto para me arrastar sabe Deus para onde, mas um grito veio de longe. Logo um garoto um pouco mais velho que eu correu até onde estávamos.

- Solta ela!!! PSICOPATA DE MERDA!! - Ele carregava uma garrafa de whisky na mão e estava pronto para atacar Crowley, mas o demônio com um movimento rápido o jogou para longe, prendi o ar ao ver o garoto ser arremessado, aquilo me enfureceu.

Meus olhos se voltaram ao demônio, energia pura correu meu corpo, uma luz brilhou frenética nos meus punhos eu lancei Crowley no chão sem tocá-lo, me aproximei tomada por um poder que vinha de dentro. Os olhos transmutados em um dourado infernal.

- Como eu disse, não vou a lugar algum. - Algo gritou na minha mente. - Mate-o.

Mas antes que eu conseguisse, Crowley evaporou como fumaça cinza no ar. O covarde fugiu.

Voltei a mim, a luz sumiu e fiquei extasiada, o que eu tinha feito? O que tinha sido aquilo? Encarei minhas próprias mãos.

- O que...você é? - A voz tremula do garoto sentado no chão com a boca sangrando, fez com que eu me alarmasse.

- Mais que droga... 

A Filha Do ArcanjoOnde histórias criam vida. Descubra agora