BRANCO

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O esquife com o corpo do jornalista José Júnior está sendo velado, no Cemitério Morada da Paz. O desejo dele, sempre fora ser cremado.

O local parece um auditório, em formato ovalado, lembrando um pouco, uma concha acústica ao inverso.

As cadeiras acolchoadas estão organizadas de frente para o púlpito improvisado, que tem em cada lado dois lindos medalhões de flores do campo, e que encontra-se mais à direita, deixando o esquife branco aparecendo.

O Pastor Lucas, da Igreja Carvalho de Justiça e amigo da família, está em pé ao lado de um dos medalhões de flores.

A família Medeiros está em pé, do lado oposto que o pastor Lucas, recebendo as condolências dos que estão chegando.

A cremação está marcada para às dezessete horas.

Rafael e Suzy estão abraçados. Ele a protege em seu peito, como quem cuida de uma taça de cristal. Denise está vestida de preto e não usa óculos escuros. Os seus olhos estão ligados ao marido deitado sem vida no caixão.

J.J está usando terno e sapatos brancos. Não há flores alguma por cima do corpo dele. A sua fisionomia está com uma serenidade e paz, que de certa forma conforta os que olham para ele, quando passam pelos familiares, prestando as condolências.

A dor que Medeiros está sentindo é como se uma navalha afiada e quente, conseguisse abrir todas suas cicatrizes, internas e externas, arrancando de uma só vez, a carne fora. Porém quem olhava para ela, parecia ver diante de si, uma estátua de mármore do Panteão Romano.

Almeida chega e abraça a todos.

Juliana olha para seu pai enquanto faz carinho na barriga. As conversas que tiveram, passam num piscar de olhos, indo para frente e para trás, igual uma roleta.

O local não chega a ter cem pessoas. Elas vão passando, falando com a família e sentando. Pastor Lucas pega o microfone, faz o teste e todos vão aos poucos sentando.

Com todos em seus lugares, ele começa:

— Hoje estamos reunidos aqui, para prestarmos nossa homenagem à vida de nosso amado amigo e irmão José Júnior. Eu o conheci num momento difícil da minha vida. — Lucas para de falar, e na sua memória vem o dia que os dois se conheceram. — Eu, estava sentado na entrada de um boteco. No centro da cidade. Havia cheirado e bebido a noite toda. Mas, vi aquele homem andando como quem estivesse procurando algum lugar. Uma loja, acredito eu... não recordo. — O pastor limpa a garganta. — Eu estava zerado. Sem dinheiro algum. Aliás, nem minha família, que está aqui presente, morava mais comigo. Todo o dinheiro que pegava era para usar droga e beber. Mas, esse homem — Lucas olha para J.J deitado. — quando estava passando por mim, eu o assustei quando segurei em sua mão direita e pedi um trocado. Ele parou e olhou nos meus olhos e perguntou: "Pra que você quer o dinheiro?", na hora subiu uma raiva dentro de mim... "O que ele tem haver com isso? É só dizer tenho ou não tenho!", porém, ele me chamou para entrar no tal boteco. Pagou uma sopa de carne com água ou suco... não recordo agora. Porém, o que recordo claramente foi a pergunta que ele me fez: " O que você está fazendo com sua vida?", é lógico que já havia escutado essa mesma pergunta diversas vezes... mas dessa vez foi diferente. Não foi uma pergunta com tom de acusação, mas de perplexidade. Sinceridade? Não sei para onde ele estava indo naquela manhã, ou o que procurava, mas ele me escutou durante horas. Foi fácil conversar com ele, digo, ser ouvido... porque somente quem estava falando era eu. — Pastor Lucas abaixa a cabeça. Levanta-a e olha para os presentes e continua falando.

Medeiros olhava para o pastor, mas não escutava o sermão. Seus pensamentos estavam perdidos num passado recente. É como se todas as memórias, estivessem dentro de um furacão. Na verdade, ela sentia-se dentro de um furacão de areia, idêntico ao do filme "MadMax — Estrada da Fúria".

A Língua de Deus - COMPLETO - 30/10/2019 - +18 Anos. SEM REVISÃO Onde histórias criam vida. Descubra agora