Capítulo 2

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Três dias se passaram desde que o agente Eugenio Siller deixou seu telefone com Anahi. Ela não ligou. Devido ao excesso de outros casos, alguns prioritários para a agência, os agentes envolvidos esqueceram a atenção especial ao caso Rulli.
A vida de Wiliam decorreria de modo pragmático, tudo arquitetado, não fossem os traumas que o atormentavam. Mais uma noite rolava na cama, suando frio, com as mãos fechadas em punho e lençóis presos nos dedos. Em seu repetido sonho, ajoelhava-se frente a um espelho d'água, procurava seu próprio reflexo entre uma e outra vitória-régia. Algo começara a emergir lentamente na água. Wiliam debateu-se de um lado ao outro na cama, negando a lembrança. Queria gritar por ajuda, que a tirassem de lá, mas o ar lhe sufocava os pulmões. O grito saiu alto, e o som de seu próprio horror lhe acordou. O choro estava em sua garganta. Sentou-se com os cotovelos nas coxas, agarrou os cabelos e sentiu lágrimas inundarem sua face.
...
O dia amanheceu, tomou um banho demorado e vestiu um alinhado terno Gucci. Por diversas horas no dia quis sucumbir à depressão que a lembrança suscitava, mas com a agenda lotada de trabalhos, conseguiu mascarar a amargura com o distanciamento. Ele teria que acompanhar a investigação das equipes que atuavam nas docas e ouvir o relatório da equipe que trabalha monitorando o cartel de Tijuana.
Quarta-feira, uma denúncia anônima informou a iminência de uma negociação alta de êxtase em uma boate em Beverly Hills. Ao registrar que a informação levava à boate de Sebastian Rulli, Wiliam dispôs-se a cabecear ele mesmo a equipe de investigação. Por noites seguidas não dormiu, usando cápsulas de guaraná e cafeína para manter-se acordado. De dia cumpria sua rotina na Agência e à noite seguia com a investigação nas ruas onde jovens de classe alta transitavam pelas calçadas drogados e bêbados.

Uma parte defensiva de seu organismo protelava ao máximo dormir para evitar os pesadelos que iniciavam no mínimo espaço de inconsciência. Após o banho frio na madrugada de sábado ao chegar da noite de plantão, pôs na boca mais algumas cápsulas de composto de cafeína e guaraná e assistiu a documentários com um copo fumegante de café com chocolate amargo na mão até o sol surgir.
Wiliam costumava caminhar ou pedalar aos sábados pela manhã. Desceu pelas escadas nove andares para se aquecer, ajustou no rosto os óculos aviador e arrumou o boné. Antes de sair do prédio, seu telefone tocou.
‒ Bom dia, Will ‒ seu pai o cumprimentou empolgado do outro lado da linha.
‒ Olá, pai.
‒ Que voz desanimada é essa?
‒ Estou exausto ‒ confessou. ‒ Não tenho boas noites de sono ‒ explicou ao pisar o calçadão. ‒ Então acho que meu telefonema será proveitoso. Estou pensando em voar para Nevada. Vamos comigo? ‒ propôs. ‒ Podemos ver se seu irmão larga um pouco Mariah e vai conosco a um cassino em Vegas.
O filho suspirou e balançou a cabeça.
‒ Eu estou em uma investigação ‒ revelou sem ânimo. ‒ Não posso sair da cidade.
Avistou um banco e sentou-se. A conversa renderia, presumiu.
‒ E essa investigação seria sobre Sebastian Rulli? ‒ seu velho questionou preocupado.
‒ Sim ‒ admitiu, olhando o movimento das ruas. Ouviu um suspiro longo.
‒ Filho, eu já disse para deixá-lo em paz ‒ advertiu austeramente.
‒ Só vou deixá-lo em paz quando a justiça for feita. Não posso ser um profissional completo se não resolvo um caso de casa. ‒ Não existe um caso de casa... Se quer fazer justiça, volte para a faculdade e vá para os tribunais acusar, como seu irmão. Mas se não, se prefere julgar, siga a minha carreira. Você não precisa perseguir ninguém para contribuir para a Justiça no país ‒ discursou cansado.
‒ Você acha que eu sou policial por falta de opção, não? ‒ retrucou magoado. ‒ Não é, pai. Eu me realizo.
‒ Não se realiza ‒ rebateu. ‒ Se fosse realizado, estaria levando sua vida adiante como uma pessoa normal. Diga-me, filho, você tem uma vida? Tem amigos? Alguma namorada?

‒ Minha vida é meu trabalho ‒ defendeu-se, encostou as costas no banco e suspirou.
‒ Você pode ter uma vida, filho. Saia, abuse da herança que sua mãe deixou, viaje, viva ‒ aconselhou enérgico, infeliz em ver seu caçula perder a juventude numa teimosa perseguição.
Wiliam respirou fundo, amargo. Queria poder viver sem o sentimento de perda que comprimia o peito.
‒ Depois que eu terminar esse caso, vou tentar ficar mais desprendido do trabalho.
‒ Vou acreditar ‒ comentou descrente. ‒ Se cuida, filho ‒ despediu-se pesaroso.
...
21h, Wiliam tomou o terceiro banho gelado do dia para despertar, passou em frente ao espelho e notou que sua aparência estava um caos. A barba não era feita há quatro dias. Em volta dos seus olhos tinham olheiras, e seu cabelo louro-escuro não tinha corte, caído no olho. Seus reflexos estavam comprometidos pelos dias sem dormir, estava irritadiço e impaciente.
Antes de deixar sua casa, pôs outra arma no bolso interno da jaqueta, recheou os bolsos com balas de hortelã e cápsulas de energéticos que encontrou na gaveta do banheiro e seguiu para o local combinado com a equipe.
Às 23h, cada um dos nove integrantes das duas equipes encontrava-se em seus postos usando suspensórios táticos, jaquetas equipadas e rádios de comunicação em vigilante atenção. Três da manhã, a agitação de carros luxuosos nas ruas diminuiu. Um movimento suspeito chamou a atenção do chefe da operação: uma pick-up com logomarca de bebidas energéticas encostou-se à área de carga e descarga da boate de Sebastian Rulli. Wiliam lutou bravamente contra o sono e os reflexos lentos resultados de mais de 70 horas sem dormir. Esfregou os olhos e acessou o comunicador.
‒ Zero três e zero quatro ‒ chamou Eugenio e Martin conforme suas posições. Iria testá-los esta noite. ‒ Em ação. Somente visualizem ‒ orientou no rádio. Os dois caminharam até a porta de carga e descarga da boate.
Desceram do carro dois homens negros, um, alto e musculoso; outro, careca e gordo. Abriram a lateral da pick-up e pegaram duas caixas. Sem que o chefe autorizasse, Martin os abordou.

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