Capítulo 4- Ela amará Ele (part. 6)

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Não acordo bem nessa quarta-feira. Estou tristinha. Na hora do almoço, não me sobra paciência para conversar sobre assuntos triviais que brotam com os colegas da redação. Eu não quero colegas, quero amigos de verdade para papear. Aviso ao meu chefe que estou descendo para almoçar e, por sorte, ele não se convida, como muitas vezes faz: "espera aí um segundinho, que vou com você". Hoje ele parece bastante compenetrado na tela do seu computador, que mal olha para minha cara, nem para dizer: "ok". Caminho duas quadras até um bom self-service, onde as pessoas te olham com menos pena por estar almoçando sozinha. "Deve estar com pressa" possivelmente pensou a mulher estranha do vestido brega e sentada numa mesa com quatros pessoas que conversavam animadamente. Enquanto como meu prato equilibrado, um sinônimo para "coloquei de tudo": duas folhas de alface americana, tomate cereja, brócolis, nirá, uma colher de arroz integral, filé de salmão ao molho teriyaki e duas bolinhas de quibe frito (não resisti), fico digerindo o fato de que já estamos no meio da semana e não há absolutamente nenhum sinal de Marcelo. Ontem, eu fazia piada no chuveiro, pois talvez ainda acreditasse que ele surgiria em seu cavalo branco, mas a cada hora que se passa, a cada dia que ele não aparece como Marcelo do futuro para me levar para o trabalho (não de cavalo, seria complicado) e dizer "te amo", mesmo que de mentira, me faz encarar a verdade que suas intenções eram unicamente carnais. O resto, todas as frases bonitas, todos os risos, os momentos divertidos, foram apenas falsidades, um jogo sujo de conquista. Levanto o olho do prato e lá está aquela descompensada me olhando, nossos olhares se cruzaram e ela logo o desvia, como se tivesse sido pega em flagrante. Ponho a última garfada na boca, limpo a boca com um guardanapo, pego a comanda que marca a pesagem da comida e me dirijo para o caixa. No caminho, passo pela bancada das sobremesas, eles fazem isso de propósito, malditas técnicas de venda! Não me contenho, a mouse de chocolate está tão linda, tão charmosa me encarando, e eu, uma mulher na medida do possível em forma, tristinha, mereço um docinho. Pego o pote, entrego a comanda para o funcionário do restaurante registrar o consumo e sento em outra mesa, dessa vez longe dos olhos da inconveniente mulher. O que ela iria pensar agora? "Olha ali a depressiva, se entupindo de chocolate para aliviar a depressão de ser uma coitada, excluída do mundo, rejeitada por todos, até por namorados que vêm do futuro. Daqui a pouco vai se derramar em lágrimas, vou ficar aqui acompanhando". Para a infelicidade dela eu não chego nem perto de chorar, como feliz minha mousse, que, por sinal, estava deliciosa, vou até o caixa, dessa vez sem tentações, e pago a conta. Saio do restaurante ainda um pouco cabisbaixa, meu deus, eu estou apaixonada mesmo, começo a fazer o caminho de volta para o escritório. Ainda possuo alguns minutos da minha hora de almoço, decido, então, entrar numa loja de multimarcas que tem umas roupas muito bonitinhas. Dou boa tarde para a vendedora, dispenso com um sorrisinho e um obrigado a ajuda dela e fico em frente à arara, analisando algumas peças, olho atentamente à frente, depois as costas. Repito esse movimento com aproximadamente uma dezena de roupas, olho o relógio, o horário já me chama e nenhuma das que eu havia paquerado me agradara o suficiente ao ponto de me fazer abrir a carteira. Agradeço a vendedora mais uma vez e após um gesto com a cabeça me retiro da loja, voltando para o prédio do trabalho. No momento em que ponho os pés na redação, meu chefe me chama na mesa dele:

— Amanda, você vai ter que fazer a cobertura do jogo de hoje, Flamengo e América. A repórter está muito doente, não vai poder comparecer e estou colocando você pra substituí-la.

Somente nessas ocasiões extraordinárias, para quebrar galho é que meu chefe me envia para fazer coberturas ao vivo. Ele prefere me deixar na redação, trabalhando em matérias mais elaboradas. O engraçado que o destino parece me pregar mais uma peça: por que logo o jogo do América? Será que ele vai estar lá? Será que vamos nos encontrar? Será que meu namorado do futuro vai me mandar uma mensagem daqui a pouco, fazendo a impossível previsão de que vamos nos encontrar "por acaso" no jogo? Quem sabe acertar o placar do jogo mais uma vez? Sinto-me como uma completa boba, ao cogitar a hipótese e fico olhando de segundo em segundo a tela do celular para ver se pula o nome dele. Mas, infelizmente, nenhuma surpresa aparece até a hora que tenho que arrumar as minhas coisas, deixar a redação e ir com a van do jornal para o Maracanã.

Chego ao estádio duas horas antes do jogo começar. Pego as informações dos dois times e passo em tempo real para a redação que atualizava no site. O contexto do jogo, a escalação de Flamengo e América, as condições climáticas, informações da torcida, as primeiras reportagens no gramado são dados que estão sob minha responsabilidade reportar. Não é um jogo muito importante, como a maioria das partidas do campeonato estadual e, portanto, as torcidas comparecem em número pequeno. Eu, inclusive, já havia colaborado em uma coluna do jornal que tratava exatamente dessa questão: o esvaziamento da importância dos torneios regionais, principalmente pela quantidade enorme de times e consequentemente de jogos. Quando as equipes entram em campo, pego o depoimento dos principais jogadores de cada equipe e eles respondem da maneira padrão de um jogador de futebol, que era transmitido ao vivo pela internet e numa rádio parceira. O trabalho desse tipo de entrevista de jogador é tão monótono quanto um servidor carimbando páginas numa repartição – eles sempre respondem a mesma coisa, não sei por que continuamos perguntando. Logo em seguida o jogo começa e um zero a zero chato se arrasta por todo o primeiro tempo.

Pego-me analisando a torcida do América, tão pequena, para ver se achava Marcelo perdido por lá. Será que ele veio? Fico procurando, mas logo meu consciente trata de me dar uma bronca: "ele some, te dá um bolo e você ainda fica catando o rostinho dele no meio de uma torcida de futebol no Maracanã? Sua idiota!". Então eu volto a me concentrar no jogo, o meu trabalho. Eu, como boa vascaína não consigo torcer para o Flamengo, mas, por outro lado, América era o time dele. Marcelo merecia sofrer! Nossa, quanto rancor, Amanda! Que ódio no coração! Essa não é você! Ele, de repente, é uma pessoa legal, um cidadão de bem, pagador de impostos, decente, correto, contudo, como homem, gênero masculino, é um dos piores cafajestes. Isso, entretanto, não faz dele um ser humano execrável... Não vou ganhar nada regando o ódio por ele, e ficarei remoendo o fora por mais tempo. É com esse pensamento na cabeça que abro um leve sorriso quando o América abre o placar, logo no início do segundo tempo, gol de falta na gaveta, o goleiro sequer apareceu na foto. Torno meu pescoço novamente para a torcida do América e, mesmo sem achá-lo, consegui vê-lo feliz, pulando, aquele lindo rosto em alegria. Essa imagem me faz bem, não sei por que. Ainda há esperança em meu coração que eu tornaria a vê-lo assim, sorrindo, em êxtase, ao meu lado? Meus sentimentos e pensamentos referentes ao Marcelo pareciam uma bola de ping-pong, de um lado para o outro, uma hora rancor, outra hora esperança, uma jogada com efeito, uma cortada em seguida. A outra bola, a de futebol, morre nas redes do América bem no final do segundo tempo, num bate e rebate na área o artilheiro folclórico da galera flamenguista marca o gol de empate, dando números finais ao jogo. Entrevisto os jogadores do América, inconformados com o empate sofrido perto do término, mais com uma pitada de satisfação pelo ponto conquistado contra o grande clube carioca. Os jogadores rubro-negros, por outro lado, exaltam o empate no final do jogo, mas se lamentam pela perda de pontos importantes na classificação. "A obrigação do Flamengo é ganhar todo jogo" – termina a entrevista, o autor do gol.

Após as declarações ainda no campo de jogo, faço a cobertura da saída do vestiário, a coletiva de impressa e me direciono até o estacionamento do estádio para esperar a saída da van que nos levaria de volta à redação. Não sei como meus olhos conseguem se deter num vulto que estava tão longe, talvez exista um dispositivo no cérebro que apita quando a visão periférica, panorâmica, sei lá, avista algo relevante. Entrando no carro esporte cinza que eu já havia estado, vejo Marcelo. Fico paralisada, gelo. Ele! Não sei o que fazer! É muita coincidência! Será que era ele mesmo? Marcelo já havia entrado no carro e eu petrificada, fico observando o carro manobrar, se direcionando para a saída. Os vidros do veículo possuíam uma película muito escura, impossibilitando que eu pudesse espiar melhor. Será que é ele mesmo? Ou meu inconsciente, tão inconformado com o pé na bunda levado, começou a vê-lo por aí, verdadeiras ilusões? Eu havia visto o homem de costas e rapidamente de perfil, parecia muito, o carro era o mesmo modelo, a mesma cor, um jogo do América, no Maracanã, as chances eram grandes. Ele estava ali tão perto... E se nos encontrássemos? E se nos esbarrássemos sem querer num dos corredores do estádio? Com que cara iria me olhar? Será que iria me cumprimentar ou fingiria que não me viu? E se o encontro fosse um esbarrão que ele não pudesse disfarçar, o que ele iria me falar? Que desculpa iria inventar por ter sumido completamente? E eu, aceitaria as desculpas? E se ele me chamasse para fazer algo depois do jogo? Eu aceitaria? Ficaríamos de novo? Tantos "ses" que não aconteceram, tantos "ses" que iriam ser remoídos um tempo na minha cabeça. O motorista da van me chama, me despertando da paralisia. Quando vira, ainda atônita, ele me pergunta seu eu havia visto um fantasma. Respondi em tom de humor que sim, ele, de alguma maneira tem muito de sobrenatural, tentando disfarçar minha face pálida com um sorriso. Logo após a van deixa o Maracanã, mas minha cabeça permanece lá, no estacionamento, apegada ao vulto de Marcelo, era ele, com certeza.

O Homem do Futuro do PresenteOnde histórias criam vida. Descubra agora