12 - A carta

10.6K 868 1.6K
                                    

Falamos apenas o essencial o restante daquele dia. Voltamos para o navio para dormir e meu amigo continuava no mesmo silêncio abatido.

- Bash. Quer conversar sobre o que houve? - perguntei e ele não respondeu - Bash? Sei que não está dormindo, está de olhos abertos... Sebastian?

Joe, um de nossos companheiros de trabalho, ergueu a cabeça.

- Seu nome é Sebastian? Soa como se devesse ser dono do navio. Achei que Bash significasse que gosta de bater nos caras. Bom saber. - disse zombando.

- Arruinou minha reputação! Poderia te dar uns tapas! - Bash falou olhando para mim.

Eu tinha conseguido. Ele tinha falado comigo. Apesar de não ter sido exatamente uma conversa amigável. A minha intenção era apenas tirá-lo daqueles pensamentos que pareciam estar lhe sugando a alma.

Aquilo me fez lembrar de outra situação na qual usei uma técnica parecida para ganhar a atenção de alguém...

- Tinha uma garota em Avonlea, a Anne... - senti um aperto no estômago quando falei aquele nome - Uma vez a chamei de cenoura e ela me bateu na cabeça.

- Eu não tiro a razão dela! - ele respondeu.

- Ela é ruiva... temperamental.

- Devia ter feito mais do que te bater.

De repente me veio uma vontade de vê-la. Mesmo que fosse me enfrentando furiosa como fazia quando disputávamos nas aulas. Empinando seu nariz e me olhando com aqueles grandes olhos, azuis como o mar que me rodeava.

- Fico pensando... se a verei de novo!

- Quanto tempo planeja ficar nesse navio?

- Não sei. Eu quero ir aonde meu espírito me impulsionar... era o que meu pai iria querer.

- Acho que carregarei carvão para sempre. Feito os pistões do motor. Girando e girando, sem ir a lugar algum... estou preso aqui. - ele falou com tristeza.

- Me sentia preso em Avonlea. Se voltar para casa, posso nunca mais conseguir sair.

- Moleque, chama isso de problema? - dessa vez foi Joe quem falou - Alguns de nós não temos casa.

- Então, me diga. Essa garota que te bateu... ela é bonita? - Bash questionou mudando o assunto.

- Não é nada do que você está pensando!

- Não estou pensando nada! Só fiquei curioso.

- Sim, ela é bonita. Satisfeito agora?

- Sim. Estou satisfeito!

Escutei o som de seu riso abafado. Eu tinha dado a ele mais um motivo para zombar de mim. Mas se isso o tirasse daquela letargia eu pagaria o preço de bom grado.

-------

No dia seguinte Bash ainda estava abatido. Ele quis ficar no navio, então saí sozinho para explorar melhor o comércio de rua. Aproveitei para provar algumas comidas que ele havia me impedido antes.

Eu também estava pensativo. Não triste como Bash, apenas refletia se aquela viagem ainda fazia sentido. Em todos os momentos me levavam e me sentir como um menino mimado que tem tudo, mas é ingrato.

As pessoas à minha volta tinham dificuldades que eu nem imaginava. Desejavam a vida da qual eu desejava fugir. Mas, não era ingratidão. Eu sabia o valor daquilo que meus pais e avós haviam construído para mim. Apenas não tinha certeza se que queria viver da mesma forma que eles viveram e precisava de um tempo para decidir o que fazer.

My Anne with an EOnde histórias criam vida. Descubra agora