Eu andaria os cantos
Da minha mente vazia
Mas eu estou cheia de trevas
Com a mais solitária luz
E eu nunca serei
Eu nunca serei eu mesma
Eu nunca vou estar
Eu nunca vou estar tão bem
E nós vamos ficar bem, tem um fim
Dói cair novamente
E nós vamos ficar bem, eu prometo
Dói cair novamente tão baixo.— Cursive
Aquele definitivamente era o dia mais desgastante que Sebastian tinha tido em muito tempo.
Todo aquele drama envolvendo tráfico e violação era demais para ele. Era demais para qualquer pessoa.
Em um momento estava com tanta raiva de John que poderia muito bem socá-lo por horas, em outro se compadecia completamente pela aflição dele, que agora percebia não ser nada injustificada.
Coisa demais.
Era coisa demais.
Qualquer homem perderia a noção diante daquelas circunstâncias.
Só a possibilidade de ser responsável por algo assim era enlouquecedora, a chance de falhar devia ser insuportável.
Tendo crescido com quatro irmã, Sebastian não conseguia parar de pensar: e se fosse uma delas ali? Se fosse alguém que ele conhecia? Alguém que amasse?
E ao mesmo tempo, não importava que não fossem. Não importava que ele nunca tivesse visto nenhuma daquelas mulheres na vida ou nunca fosse vê-las. Saber que ali dentro e em vários lugares como aquele um monte delas estava dispondo de seus corpos, sendo humilhadas e corrompidas noite após noite, o deixava nauseado.
Devia ser o suficiente para quebrar uma alma e ele se flagrou a beira do desespero quando achou que talvez não conseguisse sequer salvar três delas.
Burlou o plano de John sem pensar duas vezes quando teve a chance.
Era idiotice ter que esperar.
Graças aos céus sua intervenção antecipada se mostrou necessária e logo ficou bastante claro que McColin não teria conseguido sair de lá com as três garotas.
Não de uma vez só, pelo menos.
Agora, para completar o combo de ouro, Sebastian estava indo atrás de uma delas, que por algum motivo achou que seria legal passear pela vila depois de quase ter sido estuprada.
Ele a seguiu até a estalagem, mas foi tomado por uma cautela que não lhe era característica assim que adentrou o estabelecimento.
— Tem certeza que ela está lá? — a mulher indagou para o recepcionista, que assentiu rapidamente.
— Absoluta. — disse ele. — A viúva Maeven veio buscar duas tortas e disse que as duas brincaram tanto que talvez nem conseguissem esperar para comer antes de dormir.
Ele notou os ombros dela relaxaram e uma expressão de alívio melancólico tomar conta de seu rosto, exalando uma exaustão contida.
Sebastian tinha uma sensação estranha em relação àquele rosto e quanto mais olhava para ele, mais sentia que a conhecia.
— Faz muito tempo?
— Algumas horas. É provável que já estejam todas dormindo.
Ela assentiu, se pondo a sair por uma porta estreita no lado oposto ao que tinha entrado.
— O que há de errado? — o homem deixou o balcão, interpelando-a. — Nunca vi você na vila tão tarde. Aconteceu alguma coisa?
Ela tentou forçar um sorriso, mas, pelo menos na percepção de Sebastian, fracassou notoriamente.
É o formato angular do rosto, pensou ele.
Não dava para dissimular emoções tendo um rosto assim.
E era... fascinante.
— Não. — mentiu ela. — Eu estou bem.
— Vou chamar Bless para ficar na recepção e levo você em casa.
— Não precisa. — mentiu novamente. — Já tenho companhia.
A segunda parte não era mentira, mas ela não sabia disso e, se ele pudesse garantir, continuaria não sabendo. Não queria correr o risco de outra reação como a de lady Madeline. A maluca tinha deixado uma marca quase permanente no braço dele.
Além disso, aquela mulher não parecia mesmo querer companhia e, depois de tudo que tinha acontecido, ela tinha total direito a tal coisa.
Se Sebastian podia acompanhá-la em segurança até em casa sem aborrecê-la, por que não faria?
— Tem certeza? — o recepcionista insistiu, indo até uma espécie de copa improvisada que ficava na própria recepção. — Quer levar um bolinho? Foram feitos hoje a noite. Ainda estarão bons amanhã.
A mulher negou com a cabeça.
— Ainda tenho um pedaço do último. Obrigada. — agradeceu com carinho.
— Boa noite, Elena. — ele se despediu de maneira afetuosa e Sebastian se surpreendeu com a surpresa que o invadiu ao ouvir aquele nome.
Não havia motivos para isso, mas ele podia jurar que havia sentido alguma coisa.
Reconhecimento, talvez. Porque aquele rosto não podia ter outro nome senão esse.
Elena.
Parecia uma poesia.
Ela deixou a estalagem por uma porta do lado oposto ao que ele estava e Sebastian saiu rapidamente, contornando a casa pela parte de fora. Ele a seguiu por um caminho estreito e pouco iluminado, ouvindo o som de um choramingo baixo fluir dela.
A mulher estava tão presa na própria angústia que não notou sua presença em nenhum momento, mesmo que em certa altura Sebastian tenha deixado de tentar disfarçar. Ele só acompanhava os passos, se forçando a ignorar o quão estranho o caminho estava se tornando.
Não haviam casas ao redor ou qualquer coisa que indicasse habitação.
Se ela quisesse tentar matá-lo, aquele seria o local perfeito.
Ainda assim, ele continuou a acompanhando silenciosamente até chegarem em um lago. Estranhando o local, parou próximo a uma árvore, esperando para ver para onde ela iria depois disso, mas foi surpreendido quando ela começou, com uma urgência quase assustadora, a se desfazer de parte das roupas.
A essa altura, tendo como iluminação apenas a luz dos astros, Elena era só uma silhueta, mas a ânsia martirizante em seus gestos era bastante visível.
Quase palpável, na verdade.
Ela adentrou a água, que naquela altura da madrugada devia estar gélida, esfregando os braços e o pescoço com força, como se tentasse desesperadamente se limpar de algo muito sujo.
O choro não sessou durante o processo. Pelo contrário, ele apenas se ampliou em volume e tormento.
Era um som alto e sôfrego, reverberando pelas árvores e através delas.
Foi uma das únicas vezes na vida em que Sebastian se chocou com tamanha dor. Era uma externalização crua, urgente, exposta e, pelo menos no que dizia respeito ao que sabia, inexplicada.
E sempre seria.
Sebastian nunca saberia o que causou aquilo.
Os gritos desesperados pairariam em sua cabeça por anos, talvez até décadas, mas ele nunca saberia o motivo de tal aflição.
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O florescer dos lírios
RomansaNesse envolvente romance de época, três mulheres com personalidades diferentes se encontram e tem suas vidas mudadas enquanto embarcam em uma jornada de cura, autodescoberta e procura pelo amor.