Pov. Camila
Meu pai costumava dizer que nada acontece por acaso e que devemos ser capazes de perceber os sinais de que algo bom virá em qualquer situação. É o modo de pensar que ele aprendeu com meu avô e ensinou a mim e a minha irmã. Sempre ver o lado positivo, sempre buscar o "se não acabou bem, é porque não terminou ainda".
Ele gostava de frases de efeito. Acho que faz parte do publicitário dentro dele. Fazia, fazia parte. O mais brilhante e importante publicitário de São Paulo. Ele certamente teria a frase mais tocante para este momento, que se encaixaria como uma luva. Meu pai não deixou de acreditar nem quando a vida lhe sentenciou à morte. "O que tiver de ser será... Vou ficar bem. A vitória pertence a quem acredita nela por mais tempo."
Sei que isso é citação de alguém. Ele adorava citações em qualquer língua. Todo dia ouvíamos uma.
Quando papai conseguiu ultrapassar os seis meses de vida que lhe foram estipulados pelo câncer no pulmão, minha fé redobrou e acreditei que ele venceria, mas eu não era parâmetro. Eu acreditava em qualquer coisa que ele fizesse ou dissesse. Agora, 20 de janeiro de 2014, dez meses após o diagnóstico, acabo de assinar os documentos para liberar seu corpo, enquanto meu avô tenta inutilmente confortar minha avó.
Minha mãe ainda dorme, sob forte efeito de calmantes. Se optei por acreditar até o fim, ela — talvez por enxergar algo que eu não pude — optou por se esconder, por negar a perda iminente.
Olho ao redor e não vejo minha irmã em nenhum lugar. Preciso encontrá-la. Ando em direção à entrada do hospital, pensando que ela pode estar lá fora.
Pessoas entram e saem, cada uma vivendo seu próprio momento. Algumas comemoram nascimentos, outras lamentam perdas como a minha.
Olho para os lados, apressada. Preciso encontrar Sofia.
Deixo a recepção e, quando encosto no vidro para empurrar a porta, vejo alguém tocar no outro lado para entrar. Ela usou a mão fechada. Há tatuagens em seus dedos, pequenos sinais que não reconheço. Noto quando ela dá um passo atrás para que eu possa passar.
Trocamos um olhar, que não dura mais que dois segundos. Olhos verdes, marcados de vermelho, como se tivesse acabado de chorar. O lábio inferior está cortado e há um arroxeado no queixo. Ela puxa o gorro escuro para baixo, como se eu a tivesse pegado em flagrante, e vejo apenas pontas de cabelos castanho-escuros.
Ela para e me encara, como se fosse dizer algo, ou pelo menos julgo que fosse.
Aperto mais meu casaco, que se perde em um tom entre o rosa e o salmão, ao sentir o ar gelado passar e se chocar contra a camisa branca de gola que uso por baixo. A saia preta e curta, não protege minhas pernas. Como o tempo pode mudar tanto em São Paulo? Pela manhã, por pouco não pego o casaco, mas meu pai me deu um último conselho:
"Camila, o que eu sempre digo? Não saia de casa sem casaco".
A botinha de cano baixo e salto fino já fez com que eu perdesse a habilidade de sentir os dedos após uma tarde inteira andando de um lado para o outro, e isso me desvia do fato de que eu gostaria de poder não sentir nada.
Avisto minha irmã. Sofia é só dez meses mais nova do que eu, o que nos faz ter a mesma idade, dezoito anos, pelo menos até o mês que vem, quando faço aniversário. Ela é a versão adolescente do meu pai. Não consigo evitar um sorriso triste. Ela vem andando em minha direção, com seus cabelos negros contrastando com o castanho dos olhos. Ela me abraça silenciosamente, e, quando me solta, percebo que a mulher ainda está parada, mas algo em seu olhar mudou ao ver minha irmã. Um brilho de inconfundível fúria surge antes que ela coloque as mãos nos bolsos do casaco cinza-chumbo e se afaste.
Se minha irmã percebe, não diz nada.
É estranho e me pergunto à razão de me preocupar com isso. Talvez seja a ligação instantânea que a dor estabelece entre as pessoas. Ou talvez seja só um modo de desviar a atenção do que eu mesma estou vivendo.
Novamente, volto a pensar na conversa que tive com meu pai, e uma frase explode em meu coração, à medida que caminho com Sofia pelos corredores brancos e congelantes do hospital:
"A vida é muito mais que uma sucessão de fatos ao acaso. Quando você acha que nada mais pode acontecer, é exatamente aí que tudo muda".
Pov. Lauren
Estou há uma hora parada em frente ao hospital. Meu celular tocou algumas vezes, mas nem o tirei do bolso do casaco. Sei que é minha mãe e ainda não estou pronta para entrar.
Cruzar aquela porta é formalizar a morte de mais alguém que amei. E, honestamente, quero mais é que a morte se foda.
Não quero ver o corpo da minha única irmã, não quero ver Zac, meu primo, desolado porque seus pais e irmão morreram em um acidente de carro causado por mais um filho da puta imprudente da classe alta de São Paulo. Não quero olhar para minha mãe e ser sufocada por tudo o que senti quando meu pai foi assassinado há quatro anos. A morte já me levou vidas demais. Observo o entra e sai de pessoas, a diferença de cada uma delas. E me atenho aos detalhes para não ser afogada pelo todo.
Dou uma última e longa tragada no cigarro, deixo o que sobrou escorregar entre os dedos e o apago com a ponta do coturno. Quase posso ouvir a voz da minha irmã me acusando de não me preocupar com o meio ambiente. Então, por ela, abaixo, pego a bituca novamente e jogo em uma lata de lixo, enquanto caminho rumo à porta do hospital.
Um vento gelado corta a rua e coloco o gorro, para me proteger da corrente de ar e do olhar das pessoas.
Após a briga das últimas horas, não sou exatamente algo que valha a pena olhar, porém o estado da garota é pior — aquela que levou a vida de quatro pessoas da minha família por tirar um racha na avenida, e que não será condenada jamais, graças ao pai promotor. A ironia é que ela nunca será presa, e eu passei a última noite da vida da minha irmã na cadeia, enquanto ela lutava para resistir a uma segunda e derradeira parada cardíaca.
Coloco a mão no bolso e aperto o chaveiro dela. Um chaveiro de pelúcia em forma de estrela cor-de-rosa.
Um presente do meu pai, que ela segurava quando os paramédicos a tiraram do carro capotado. Agora sou eu quem aperto a estrelinha com uma mão, enquanto a outra encosta no vidro da porta do hospital. Uma garota faz o mesmo.
Não tem como não lembrar da Taylor ao ver o casaco rosa. Ela adoraria. Ela vivia escolhendo modelos em revistas de moda pelos quais nunca poderia pagar. E é aí que as semelhanças entre a minha irmã e a garota terminam. Um olhar rápido é suficiente para reconhecer que ela destoa das outras pessoas. Uma aparente delicadeza, traduzida pela pele morena, traços suaves e cabelos castanhos, caindo tranquilamente em ondas pelos ombros.
Ela me olha também e parece fazer a mesma investigação que eu. Lágrimas marcam seu rosto. Semelhanças que só encontramos em um hospital, a dor e a morte são implacáveis com todos nós. Entreabro os lábios, nem sei se ia dizer algo, mas qualquer pensamento racional se vai quando uma garota a abraça.
Odeio prejulgamentos e me odeio mais ainda por ceder a eles, mas, se a garota me faz lembrar a minha irmã, a outra garota desperta a memória de seu assassino.
Ainda que elas não sejam parecidas, algo em seu porte indica que pertencem ao mesmo grupo social. Aquela que não se importa com as consequências, porque sempre vai ter um pai rico e influente para limpar sua barra. Passo por elas sem olhar para trás. Mal podendo esperar pelo momento de encontrar minha mãe e meu primo e deixar este hospital. Odeio este lugar.
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Coração perdido (G!p)
Hayran KurguLauren teve as pessoas mais importante de sua vida mortas em um acidente de carro. Camila perdeu o pai e está com problema na família. Lauren é a pessoa que Camila deveria afasta. Lauren não gosta do tipo de pessoa que Camila convive. Elas são diver...