Cap. 35

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Miguel Narrando

Incrível como as coisas mudaram. Eu já não sinto mais ânimo para nada, nem mesmo nas coisas que eu mais amava fazer, como por exemplo o meu trabalho. Não me importo se tem a minha comida preferida feita na mesa. Não me importo com o tipo de roupa que ando vestindo, nem com o meu cabelo e minha barba crescendo.

Sinto como se tivessem me atirado de um navio, me fazendo cair em alto mar e eu desaprendesse a nadar. Tento movimentar meus braços e minhas pernas, mas é em vão, eles não saem do lugar. Meu tempo vai acabando, assim como o oxigênio. Tento pensar em possibilidades, mas as pessoas que estão na praia não conseguem me ver, muito menos chegar até mim. Não há barcos, iates nem navios por perto. Eu me encontro sozinho tentando lutar contra uma força que não depende depende mim. Uma força que não me mata, mas também não me mantém vivo. O sofrimento está ali, o desespero está ali. Mas eu não morro.

Esse sentimento vem acompanhado de longos dois anos e meio. Eu sofro, eu choro, tenho recaídas, mas não morro. Não porque não quero, mas porque não consigo, não sou capaz nem de tirar a minha própria vida. Do que adianta a filosofia de viver a vida sendo que nem sentido, para mim, ela tem mais? Qual a graça de (sobre)viver?

Estava deitado na cama apoiado com os braços na janela com tela observando as crianças brincando no parquinho do condomínio. Eu nem lembrava de ter tanta criança por aqui. A maioria em torno de seus quatro ou cinco anos de idade. Pelo que contei, umas sete crianças brincavam juntas. Era pega-pega. Fiquei admirando eles por tanto tempo que peguei o momento exato que um menino marrento empurrou uma das meninas, fazendo a mesma cair de joelho no chão e provavelmente se ralar. O meu prédio era tão silencioso que dava para ouvir o que falavam entre si, já que como crianças, acabavam gritando.

— Eduardo, você machucou a Mariana! — O menino que foi ajudar a amiga informa, bravo. Ele levantou seu rosto para que ela pudesse olhar para o mesmo. — Tá doendo?

— Um pouco — a menina loirinha faz cara de dor.

— Vamos limpar, vem — o cabeludinho estende a mão para ela.

E assim os dois sumiram do meu ponto de vista. Provavelmente entraram no prédio para poder ter acesso ao banheiro e limpar o ferimento dela, como o amigo havia proposto. Todo esse ocorrido que eu acabei de ver me lembrou da minha infância. Época que eu tinha uma amiguinha que usava prótese em uma das pernas, da qual eu sempre defendia dos outros meninos que praticavam bullying com ela. Como será que ela está agora?

Volto a realidade fora dos meus pensamentos quando me deparo com o céu, que estava com aquele sol um pouco tímido, entre as nuvens. Talvez chova mais tarde.

Romero entrou no quarto para pegar alguma coisa, mas antes percebeu minha presença e sorriu de lado.

— E aí, irmão, como você está?

— Indo, e você?

— De boa.

Era mais ou menos o diálogo que virou rotina entre a gente. Nossa relação já não era mais a mesma. Mas tudo bem, eu entendo. De qualquer forma a vida do Romero não parou. Todos continuam seguindo suas vidas. Mesmo que parte dos pensamentos deles estejam em mim, a vida continua.

Ouço a porta abrir algum tempo depois que Romero saiu, deve ser a Maia voltando do estágio. Se ela soubesse o quão orgulhoso eu estava dela... mas nem isso eu conseguia dizer. Nada saía da minha boca.

— Miguel? — Levo um pequeno susto quando minha irmã aparece na porta me chamando. Apenas olho para ela, mostrando que ouvi. Sua expressão muda, passa a ser tristonha. — É que eu... eu passei na padaria e comprei alguns sonhos de doce de leite, que sei que você gosta. Quer comer?

— Não, tô bem assim — e novamente o sorriso que ela mal formou se desmanchou.

— Ah, Miguel. O que que custa? Eu estou tentando, todos nós estamos tentando. Por que você também não tenta?

Encaro aqueles olhos escuros que hoje em dia já não transmitiam mais tanta felicidade como antes, e provavelmente por causa de mim. Aqueles olhos que mesmo sem querer, dizia tanto. O olhar de alguém que teve um dia cheio, mas que ainda estava de pé na esperança de terminar o dia bem. E eu sentia tanto por ela.

— Por que ao invés disso vocês só não desistem?

— Porque essa não é uma opção para nós — sua cara fecha.

— Eu não aguento mais isso. Sou um empecilho na vida de vocês. Sinto que vocês poderiam estar na melhor fase de suas vidas, mas não estão, e por causa de mim. Parece que toda conquista de vocês não são comemoradas ao extremo, porque sempre tem eu ali, como uma pedra no sapato.

— Você não é uma pedra no sapato de ninguém. Se estamos lutando pela sua melhora, é porque acreditamos que ela é possível e que você é capaz. Nada disso é um fardo. Mas é um processo que requer tempo, e talvez não seja no tempo que queremos.

— E quando isso vai mudar? Quando eu vou milagrosamente acordar e ter vontade de viver? Me diz. Quando que tudo isso vai passar e as coisas vão mudar?

— Pode não ser hoje ou amanhã, muito menos semana que vem, Miguel, mas nós estaremos aqui com você esperando por esse dia.

— Vocês estão apostando em algo que nem sabe quando vai acontecer. Algo que não aconteceu já fazem dois anos e meio. Apostando todas as suas fichas em algo que talvez nem aconteça.

— Nós acreditamos em você, Miguel. Você é alguém, sua vida importa para nós. Sabemos que vai conseguir.

— Vocês não sabem de nada, Maia! Parem de inventar mentiras positivas. Parem de acreditar no que falam. Vocês não têm noção de como é ter depressão. Como é se sentir no fundo do poço, sem esperanças ou expectativas, sabendo que tudo está acontecendo ao seu redor, que as pessoas estão vivendo, a vida lá fora está acontecendo, mas você está parado, atrasado no tempo.

— Podemos te ajudar a recuperar a sua vida, Miguel. Aquela prazerosa e maneira que você tinha. Mas temos que seguir juntos nessa.

— Vocês não entendem — passo a língua pelos lábios. — A porra da mente de alguém depressivo é uma fonte de negatividade. Eu me sinto a porra de um fracasso todos os dias. Acordo e já penso em quando o dia vai terminar. Eu não me importo se meu cabelo e minha barba estão grandes, isso não faz diferença, cortando ou não, minha autoconfiança ou minha autoestima não melhorar. É um conjunto de coisas. Eu acordo e vou dormir pensando em mil formas de acabar com a minha vida — meus olhos lacrimejam. — Eu não tenho mais prazer em nada. Não sinto vontade de fazer nada. Parece que minha mente está em outro lugar o tempo todo, eu nem sinto o meu corpo. E eu quero sair disso. Ninguém quer viver dentro dessa mente fodida. Mas não dá, sabe? Não dá. É uma zona que nos afunda cada vez mais, até que de tanto tentar sair dela, a gente cansa e desiste.

Maia fica em silêncio com lágrimas nos olhos, sem palavras. De repente o único som que estava presente era o canto dos pássaros no fim de tarde e o metrô, que é aqui perto.

— Eu sei que você vai dizer sobre pagar outros profissionais para testar um novo método, sei que vai dizer sobre meu peso e que estou doente. Eu sei. Eu estou doente! Mas, caralho, com um psicólogo ou não, eu não consigo, tá legal? Eu não consigo! A minha noiva que morreu estava quase se formando em psicologia, como vocês querem que eu me trate com um psicólogo sem imaginar o rosto dela? Sem imaginar que estou conversando com ela? Sem lembrar do que aconteceu?

Passo as mãos no cabelo, olhando ao redor.

— Eu quero, eu juro que eu quero melhorar. Eu só não consigo. Eu quero poder voltar a trabalhar, estudar, criar novos hobbies, praticar atividade física, sair com meus amigos, beber, e se divertir. Quero estar em outros milhares de almoços em família com a família mais massa que alguém poderia ter, e eu tenho. Quero poder viver de novo. Mas eu não consigo. Ainda não. E nem sei se eu vou um dia. Vocês acham que eu gosto de não ter vontade de escovar os dentes? Acham que eu gosto de não ter vontade de tomar banho? De comer? De levantar da cama? Porra, eu só queria um motivo para fazer essas coisas de novo. Acordar com um propósito.

Para Sempre Desde SempreOnde histórias criam vida. Descubra agora