LVIII - Universo

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As partículas de pó pairavam brilhantes nas faixas de luz que as persianas, meio fechadas, deixavam passar. Eram leves e dançavam no ar, cheias de graça, alheias ao que estava a acontecer em seu redor, na inércia própria de coisa inanimada.

Algures, num planeta remoto, com um sol menos exuberante, com continentes desprovidos de vida, muito provavelmente sem a existência de água no estado líquido, num imenso deserto alienígena de cores estranhas, haveria as mesmas partículas de pó em suspensão. Dizem que os elementos químicos são transversais a todos os mundos, que existem em qualquer parte do vastíssimo e incomensurável universo. Portanto, seremos todos pó.

Mike e Chester, no estúdio caseiro do primeiro, não se ocupavam com estas considerações, nem sequer contemplavam embevecidos, a matutar no sentido da vida, as partículas de pó que partilhavam o mesmo espaço com eles. Era até perfeitamente concebível e natural que ignorassem completa e ostensivamente as partículas de pó. Estavam ali com outros propósitos, mais prosaicos.

Trabalhavam numa nova canção. Mais propriamente na letra.

As folhas de papel espalhavam-se pelo sofá, pelo chão, sobre a mesa de apoio, junto à consola onde se ligava um computador sofisticado onde Mike fazia as misturas e a produção das músicas que ali acontecia gravar. Ele agarrava num lápis amarelo, comprido e de ponta de grafite afiada, batia com este na têmpora, enquanto lia em surdina as palavras da métrica, querendo descortinar outras que fosse possível juntar às primeiras e fazer novas rimas. O importante era o significado, a mensagem, o que se pudesse ler diretamente e também indiretamente.

Estava vestido de forma simples – calças largas de fato de treino, sapatilhas, meias brancas, uma camisa de flanela vermelha, abotoada até ao antepenúltimo botão, uma camisola interior branca da qual se via a gola redonda. As mangas estavam enroladas até aos cotovelos. Sobre os joelhos tinha um bloco de notas ao qual fora arrancando as folhas que semeavam o compartimento. Algumas estavam transformadas em bolas amarfanhadas durante a rejeição do que continham, palavras que não foram consideradas suficientemente boas e que foram descartadas. No cesto do lixo havia algumas bolas de papel, mas depois tornou-se mais engraçado atirá-las aleatoriamente.

No sofá, estendia-se Chester, recostado na almofada do encosto, o corpo jogado para diante, as pernas esticadas. Estava entediado e sonolento, a posição desleixada não ajudava à concentração, mas ele não fazia nada para afastar o torpor que o consumia. Sobre os joelhos tinha o seu bloco de notas, mais inteiro do que o de Mike, com menos folhas arrancadas. Também se fazia rodear por um mar de papel. O seu lápis estava perdido, algures, nas frestas do sofá, entre as almofadas do assento. Eram três lápis, porque quando não sabia onde estava um, pedia outro e fez isso duas vezes. Tinha o telemóvel entre as mãos, assente no esterno, usava os polegares sobre o teclado virtual.

Chester estava impecavelmente vestido. Ao sair de casa, porque podia ser apanhado numa fotografia tresmalhada, um fã ou um paparazzo, vestia-se com aprumo, combinando cores, juntando acessórios que embelezavam o conjunto. Com ele tudo era como se fosse uma passagem de moda – e era ele que criava essa moda. Não o fazia por menos. Tinha a sua imagem que era apreciada por muitos.

Vestia umas calças pretas, presas na cintura por um cinto também preto. Calçava botas de montanha de camurça, de cor castanha, com atacadores exuberantes que terminavam em dois laços largos. Usava uma t-shirt branca decorada com motivos dourados, rasgada artisticamente na bainha, por cima tinha uma camisa amarela aberta, sem colarinhos, de manga curta. Cobria a cabeça com um gorro de algodão escuro, com um emblema de colégio britânico costurado de lado, que descaía sobre a orelha esquerda. Os óculos que lhe corrigiam a visão tinham uma armação fina, também dourada. Colocara um perfume almiscarado, com um pendor para o doce, pintara as unhas das mãos de negro. Usava pulseiras de contas de madeira no braço direito, os seus brincos eram dois discos também escuros, rodeados por um fino aro de ouro. No cabide, à entrada, estava um casaco de ganga curto, decorado com fivelas e pequenas correntes que tilintaram quando ele o despiu e o pendurou.

O Lado Oculto da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora