XVII - Além

38 5 12
                                    


Há dias assim, de pura preguiça. Só a relaxar, com a cabeça completamente vazia e o corpo inerte, suspenso no espaço, o olhar fixo na paisagem, mas sem nada ver realmente porque não há nada de novo no horizonte. Nem falar me apetece. Tiro umas fotos com o meu telemóvel só para dizer que não estou completamente ocioso. Hei de apagar aquilo tudo quando precisar de libertar espaço na memória. Por enquanto, vou guardando imagens que são todas iguais. Pode ser que apanhe um OVNI no enquadramento e então é que vai valer a pena guardar a fotografia para todo o sempre.

A minha vida não tem dessas emoções fortes – um encontro imediato com alguma entidade alienígena!

Estou a ser cínico, admito. A minha vida é muito emocionante, mais do que a da maioria das pessoas. Recheada e coberta de surpresas, de momentos, de triunfos, de maravilhas. Mas quando o voo é demasiado grande, a queda tem igual magnitude.

Está bem, continuo a ser cínico.

Pertencer a uma das bandas musicais mais famosas do planeta é um sonho para a maioria – para mim continua a ser o meu trabalho. É apenas prazer aliado à obrigação. Essa é a chave do sucesso e o que contribui para, em última análise, trazer brilho ao mundano. Sabermos aproveitar o que temos, sem sermos demasiado exigentes.

Como agora. Quero uma fotografia com um OVNI e só assim conseguirei sentir-me realizado nesta tarde relaxante de sábado. Ou seja, estou a elevar as minhas expetativas a um patamar irrealizável e se não as alcanço ficarei frustrado.

Como quem se mete no negócio da música tendo em vista a fama, o dinheiro, todos os benefícios acessórios de uma estrela. Nunca vai aproveitar o que tem e vai ficar zangado com o que não tem.

Quando comecei foi para simplesmente cantar as minhas ideias, musicar a minha versão do mundo, lançar alertas para as injustiças, para a desordem, para o caos da sociedade estafada de tão gorda e superficial.

E por isso recebi a recompensa?

Então, pela lógica, se me puser a tirar fotografias sem qualquer propósito, poderei mesmo apanhar um OVNI e tornar-me famoso, como o único músico de gabarito mundial a ter a sorte de um encontro imediato.

A lógica do universo, todavia, não funciona assim e estou para aqui a dissertar apoiado numa teoria estúpida que não me vai conceder qualquer prémio, a não ser o de cada vez focar-me mais num objetivo inatingível que me vai deixar invariavelmente aborrecido.

É melhor esquecer todo este azedume. Está a destruir a minha paz de espírito.

Os alienígenas conseguem ler-nos as mentes e sabem que os quero fotografar, então fogem desta zona do céu para evitar que eu tenha essa vitória sobre a sua civilização tecnológica e moralmente avançada.

Sorrio com o chorrilho de asneiras que estou para aqui a produzir. Mas é defeito meu. O meu cérebro não consegue estar cinco minutos parado. Sempre a viajar, sempre a volitar, sempre a laborar. Cala-te, cérebro! Só quero estar aqui a olhar para a cidade.

A minha filha tinha estado aqui comigo, mais cedo. Sentou-se nos meus joelhos, mostrou-me um desenho que esteve a pintar. Elogiei o seu traço, disse-lhe que estava mesmo muito bonito, as cores bem escolhidas, consegui identificar todas as figuras que ela rabiscou. Ela gosta que lhe diga que desenha bem, porque quer ser como o papá.

Bem, tenho os meus dotes com o lápis...

E agora estou a ser falsamente modesto. Foi o curso que tirei na universidade e sempre tive jeito para o desenho, para o grafismo, para computadores. Também pinto e desenho, esboços, quadros completos, graffiti, logótipos, personagens de banda desenhada, o que me apetecer. Era o meu plano B. Se a música não desse em nada, fazia a minha vida como designer gráfico numa qualquer empresa ligada à internet, morava perto de Hollywood e podia fazer uns biscates no departamento de efeitos especiais de uma qualquer produtora cinematográfica. O Joe tinha contactos bons nessa área. O Joe chegou a contribuir com uns grafismos para um dos episódios dos X-Files, foi assim uma coisa do outro mundo. Nenhum trocadilho intencional nesta ideia, como o de trabalhar para os X-Files ser de outro mundo. Mas é um bom trocadilho... O cheque não foi muito chorudo, mas fazia currículo e a série era bastante famosa na época. Comemorámos com muitas cervejas e pizas gigantescas. O Joe vomitou tudo no fim, mas foi uma noite memorável.

O Lado Oculto da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora