23. O Rosto

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Vicky

Estava uma bela manhã. Ainda pensei em mudar de ideias e ir para a escola. Se não tenho medo? Prefiro morrer sem medo do que com. Não morrerei nem enfrentarei nada assustada depois do episódio do Bairro Alto. Quem me fez aquilo foi tudo menos a Máfia.

O dia foi correndo. Ficamos em casa, como prometi. A Rita também ficou. Estava mais abalada do que eu, e percebi que estava confusa em relação a tudo isto. Ouvi-a falar com a Sofia. Disse que não se sentia segura no meio disto tudo e que podiam voltar a magoar-me. Sei que não disse mas, obviamente, sei que também tem medo de ser magoada. Ela tem razão. E eu não tenho o direito de estar aqui.

A Sofia continua com a postura forte que sempre admitiu. Mas, inversamente a tal, começou a mentiu aos pais. Disse-lhes que tinha ficado em casa porque estava doente. Os dias passam e essa "doença" continua. Passamos os dias em casa como se fossem férias.

Os meus pais não me dão nenhum sinal. Não falamos há uma semana e começo a ficar terrivelmente preocupada. Não consigo pensar em mais nada. Começo a pensar seriamente em ir para a Rússia. Já o tentei uma vez, mas a Sofia impediu-me e, por momentos, fez-me ver que era uma decisão arriscada e insensata.

Mas nem tudo é mau. Tenho começado a ver a Sofia como algo mais e cada beijo que trocamos está carregado de milhões de significados e sentimentos. A Rita apanhou-nos uma vez. Felizmente não viu nada de mais e reagiu muito bem à situação. Confessou já ter desconfiado mas não ter tido coragem nem confiança para nos dizer. A Fabiana está sossegada de mais. Parece que já não existe nas nossas vidas mas... desconfio.

No dia seguinte senti-me a pessoa mais sortuda à face da Terra: consegui falar com os meus pais. Felizmente, está tudo calmo. Pediram desculpa pela sua ausência e prometeram comprar um computador para pudermos fazer web no Skype. Não lhes contei o que aconteceu. Achei melhor ficar em silêncio para não estragar a conversa. Ficamos horas ao telefone. Fiquei a saber que a minha mãe arranjou trabalho e que o meu pai voltou a dar aulas de kickboxing em ginásios (o que costumava fazer em Itália durante as férias de trabalho no Banco onde trabalhava).

Nesse mesmo dia, por já estar recuperada das dores e dos ferimentos, decidímos voltar à nossa vida normal. Fomos à escola e ao final do dia fomos a casa do Filipe. Jantamos lá e conheci a família dele. Vive numa casa pequenina mas muito confortável. Tem um cão, o Simba, e um gato cujo nome é Luna. Tem nome feminino porque quando a Luna era bebé, o Filipe não percebia se era macho ou fêmea. Também teve dois hamsters mas, ironicamente, morreram há um dia. A Sofia chateia-se com o Filipe porque não dá atenção ao cão dele. Está lá fora preso no pátio e não para de ladrar.

O Filipe contou à mãe que é gay. Fartou-se de esconder e deitou tudo cá para fora. Pelo que me contou, a conversa não correu bem. O assunto fez-me imaginei como seria quando contar aos meus pais. Às vezes sinto vontade de lhes contar mas acabo por desistir. Nunca ouvi comentários desagradáveis da parte deles sobre o assunto mas sinto que não os conheço suficientemente bem para prever as suas reações.

Um pouco mais tarde, voltamos para casa. Encontrei a Rita no sofá e resolvi falar com ela.

Vicky: Eu sei que não te sentes bem comigo aqui.

Rita: Que disparate. -Ao aperceber-se que tinhamos que falar, a Sofia saiu e foi, provavelmente, para o seu quarto.

Vicky: Era estúpido se não te sentisses.

Rita: Não tens problema nenhum, Vicky. Só fiquei chocada ao ouvir a tua história. E acho, também, que os teus pais foram muito irresponsáveis ao deixar-te em Portuga sozinha e, ainda por cima, a partilhar uma casa com duas pessoas sem explicar a situação. É como dar um presente a alguém, abrir a caixa e ver lá uma bomba, percebes? Se os teus pais me tivessem explicado a tua situação, talvez eu a considerasse e, talvez, hoje estivesses cá à mesma. Ao não terem contado a verdade, fizeram de mim responsável de tudo o que te possa acontecer. Aliás, já me tornei responsável pelo que aconteceu há dias.

Vicky: Já pensei em ir embora, Rita.

Rita: Ao ires embora estás-me a responsabilizar ainda mais.

Vicky: Mas os problemas acabavam-se!

Rita: Os problemas aumentam quando os tentamos resolver da maneira mais rápida. Não desgrasses a tua vida. Eu vou confiar em ti e deixar-te entrar e sair de casa sempre que queiras mas, já que estou responsável pelas tuas ações, à mínima suspeita que eu tenha, só sais de casa para ir à escola, Victória. Combinado?

Vicky: Combinado.

Rita: Eu sinto-me de mãos atadas porque não podemos ir à polícia, sabes.

Vicky: Vocês podem ir à polícia por algo que vos aconteça.

Rita: Mas não por algo que te aconteça a ti.

Vicky: Ouve, eu sei que quem me fez aquilo não foi a Máfia nem ninguém ligado a ela.

Rita: Como assim?

Vicky: Acredita. Eu sei que não foram eles.

Rita: Victória, explica-me.

Vicky: Amanhá falamos, Rita, por favor.

Rita: Eu preciso de saber, Victória!

Vicky: Mas eu não tenho a certeza de quem seja, só desconfio!

Rita: Vic..

Vicky: Amanhá, Rita. -Interrompi-a, dando-lhe um beijo na cara.

Dirigi-me ao quarto da Sofia. Ainda era cedo e precisava de ter uma conversa séria com ela. Mal abri a porta, dei de caras com ela adormecida. Ainda estava com a roupa vestida e com as sapatilhas calçadas. Faltavam uns centímetros para cair da cama, por isso acordei-a. Abanei o ombro dela e sussurei o seu nome. Dificilmente, acordou, mas continuou deitada.Tirei-lhe a camisola que trazia vestida e despi-lhe as calças para lhe vestir o pijama.

Sofia: Estás armada em mamã, é?

Vicky: Acordou, a menina?

Sofia: A mamã acordou-a. -Puxou-me para a cama. -Fica em Portugal. -Permaneci em silêncio, a olhar diretamente para os olhos dela. -Não quero ficar sem ti.

Vicky: Eu estou aqui. -Abracei o corpo dela.

Sofia: Mas amanhã também quero que estejas.

Vicky: Eu vou estar amanhã.

Sofia: Jura do mindinho. -Agarrei o mindinho dela com o meu.

Vicky: Prometo que vou estar aqui amanhã.

Sofia: Tenho orgulho em ti.

A sorrir e a perguntar "porquê", ouvi os seus murmuros a ficarem cada vez mais baixos e observei o rosto dela calmo, sereno e adormecido. Não a quis acordar outra vez, apesar de continuar com uma perna fora da cama (o que me irritou imenso).

No dia seguinte, acordou com uma energia enorme. Era dia de ir almoçar a casa dela (por convite dos pais) e estava radiante por passar o sábado por lá. A Rita veio connosco.

Mal chegamos, a Dona Sara veio-nos abrir a porta. Era uma casa enorme e moderna. Entrei, envergonhada, e agarrei o braço da Sofia.

Sofia: Bom dia, pai! -Disse, ao vê-lo de costas na cozinha a preparar o almoço.

Fernando: Bom dia, piriquita! -Pousou o braço esquerdo no ombro dela. -Que menina bonita, deves ser a Victória. -Sorriu, pondo o outro braço sobre mim.

Um milésimo de segundo depois, olhei para a porta e reconheci um rosto que, apoiado sobre uma mesa na sala, se fixava em mim e não desviava o olhar nem desfazia o sorriso que trazia. Senti um arrepio por todo o corpo e bloqueei. Não conseguia desviar o olhar daquela figura. Era um deles.

Fica Comigo (Lésbicas/Gay) PTOnde histórias criam vida. Descubra agora