22. Sangue Frio

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Sofia

Chegamos a casa aterrorizadas e com a Vicky ao colo. Ela não dizia uma palavra, estava apática e não reagia a nada.

Sofia: Vicky? -Tentei que virasse o olhar fixado no horizonte para mim.

Nada. Nenhuma reação, nenhuma palavra, som, movimento. Desespero não descreve tudo o que estava a sentir. Nenhuma palavra seria capaz de descrever. Sentia o suor frio a cair pela testa e um formigueiro insistente a cada contração dos meus músculos. Sentia vontade de arranhar e passar as mãos pela cara agressivamente a cada ausência de resposta. No que estaria ela a pensar? Não imagino. E tudo o que me vem à cabeça, se tentar, são turbilhões de sentimentos, palavras, imagens. Tanta coisa junta que se torna impossível de passar para qualquer pessoa quando nem mesmo nós nos entendemos.

Sofia: Vicky, temos que desinfetar essas feridas.

Vicky: Feridas? Eu não tenho feridas.

Sofia: Estás cheia de sangue, tens de tomar um banho, mudar de roupa... eu trato-te de tudo, já que não queres ir ao hospital.

Vicky: Não tenho sangue.

Depois de ouvir estas frases sem sentido, bloqueei. Entrei em Mind Block, não sabia o que dizer. A Rita estava em choque. Vomitava na casa de banho. Nervosísmo, com certeza.

Sofia: Victória! -Chamei-a, autoritária. -Eu andei à tua procura durante horas, perguntei por ti ao mundo inteiro. A Rita está a vomitar há 15 minutos na casa de banho e eu estou aqui desesperada para te limpar as feridas e para que vás para a cama descansar! Eu sei que não posso dizer "não fiques assim", "tem calma", porque no teu lugar eu estaria igual ou pior, mas por favor, ajuda-me e ajuda-te a ti própria!

Vicky: Eu não sei nada, Sofia. Desculpa.

Sofia: Estás desculpada, Victória. Agora vem comigo. -Agarrei-a pela cintura e levei-a para o quarto.

Mais estável, despiu a camisola e as calças.  "V de Victória."... A cicatriz estava aberta e vertia gotas de sangue. O corpo dela tremia a cada passada no chão e, cansado, cedeu. Caiu de joelhos, com a mão sobre a cicatriz e uma expressão de dor. Incrivelmente, levantou-se num ápice e sentou-se na cama. Eu, desorientada, fui à casa de banho buscar álcool, betadine, algodão e pensos.

Sofia: Estás bem, Rita?

Rita: Estou.

Sofia: De certeza? Não precisas de nada?

Rita: Não. Estou a tentar acalmar-me, ainda que tal seja impossível.

Sofia: Eu vou tratar-lhe das feridas.

Quando voltei, deparei-me com ela, deitada, a segurar o telemóvel na orelha. Deduzi que ligasse para os pais, obviamente. Mal me viu, desistiu do telefonema. Pousou o telemóvel calmamente e olhou para mim, com um olhar úmido e fraco.

Sofia: Vamos tratar disto? -Sentei-me ao lado dela.

Vicky: Força.

Sofia: Como é que te fizeram esse corte no queixo?

Vicky: Com uma navalha.

Com uma navalha? Olhei para o álcool. Embebi o algodão com Etanol e, suavemente, passei-o pelo corte. Ela agarrava-se aos lençóis e contorcia-se a cada passagem. Não gritava. Apenas contraia os traço do seu rosto e mordia os lábios. Seguidamente, fiz o mesmo com outras feridas. Sobrou a cicatriz. Estava aberta e precisava de pontos.

Vicky: Preciso de uma agulha e uma linha.

Sofia: Tu não vais fazer isso...

Vicky: Uma agulha. -Olhou para mim, apertando-me a mão. -e uma linha.

Sofia: Victória..

Vicky: Já tive de o fazer muitas vezes. -Interrompeu-me. -Por favor, faz o que te estou a pedir.

O seu desejo foi uma ordem. Trouxe-lhe agulha e linha e sentei-me na cadeira ao lado da cama.

Vicky: Podes sair, se quiseres.

Sofia: Não. Eu quero ficar.

Ela não me respondeu. Mordeu o tecido da camisola e, com os dedos a segurar a ponta da agulha, atravessou a pele. Juntou a carne e ao fim, deu um pequeno nó. Eu não conseguia desviar o olhar. Era como se os meus olhos não conseguissem mudar de direção. Era como se eu sentisse a dor que ela experimentava. Ela estava agoniada. Tremia por todos os lados, sentia dificuldade em respirar.

Calmamente, levantou-se. Pegou na agulha e colocou-a junto dos algodões ensanguentados. Enrolou uma ligadura à cintura, envolvendo a cicatriz e atou-a.

Sofia: Amanhã não vamos à escola, Victória...

Vicky: Porque não haveríamos de ir? -Perguntou, fria.

Sofia: Precisas de descansar!

Vicky: Não posso deixar de fazer a minha vida. Nem tu a tua.

Sofia: Estou-te a pedir para ficares aqui sossegada amanhã.

Novamente, recebi silêncio. Vestiu uma camisola que encontrou no armário e deitou-se lentamente na cama.

A Rita veio-nos desejar as boas noites e dizer que se precisassemos de algo, que a podíamos chamar.

Sofia: Dorme bem. -Beijei-lhe a testa. -Até amanhã.

Saí do quarto, decidida a passar a noite sozinha. Ela não estava bem e, com certeza, precisava de pensar. Por isso, despi a roupa e enfiei-me na minha cama, para pensar também.

Para minha surpresa, ouvi a porta a chiar à medida que se abria. Permaneci imóvel; estática. Senti o corpo dela aninhar-se no meu e o seu braço envolver toda a minha cintura. Sentia o coração dela bater rapidamente e a sua voz pausada a estremecer todo o meu consciente. Pedia-me desculpas. "Quero dormir contigo, preciso de ti. Fica comigo, por favor."

Cobri os nossos corpos e deitei a sua cabeça no meu peito. Não lhe disse nada. Não conseguia. As nossas testas estavam juntas e, como resposta, juntei os nossos lábios também.

Vicky: Percebes agora porque é que sinto medo quando me aproximo das pessoas?

Sofia: Não te vais afastar de mim. Não vai ser preciso.

Vicky: Não quero que te aconteça o mesmo, pequena.

Sofia: Não tenho medo.

Vicky: Devias. Nada associado a mim é seguro.

Sofia: Não quero saber.

Vicky: Devias.

Sofia: Eu quero estar contigo, não interessa se há perigo. Não vou fugir. Não tenho medo de nada, não posso ter.

Vicky: Amanhã ficamos em casa, sim? -Acariciou o meu queixo. -Assim, na cama, agarradinhas.

Sofia: Beija-me.

Vicky: Queres?

Sofia: Quero, preciso, desejo...

Ela sorriu e beijou-me com todo o carinho que suportava nos lábios.

No meio de tanto perigo, sentia-me segura.

Fica Comigo (Lésbicas/Gay) PTOnde histórias criam vida. Descubra agora