Abracadabra! (Terrível bagunça)

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Merda.

Não apenas "merda". Essa situação é uma merda. Uma droga de merda. Que droga é essa de música? Solto um riso sem graça para quebrar o gelo entre a mulher que não-dorme-comigo-mas-divide-o-teto-enquanto-meu-companheir-está-em-algum-lugar.

- É um bom piano.

- É, eu sei - Ela tira a máscara e a seguro pela alça - Você gostou?

- Sim. É um bom piano.

- Como você lembrou dessa música?

Balanço os pés em sinal de agonia por ver essa situação se complicar e pelo jogo que a senhorita está armando para mim. Logo, meu sapato esquerdo está sobre o direito.

- Eu... Não sei. A melodia me perseguiu tanto... E quando me deparei com isso, esse piano lindo e... - Indico para o teclado com todos os movimentos troncais possíveis. -E achei que essa melodia podia me deixar de lado. - Realmente acho.

Ela aperta o passo, e vem caminhando até mim com paciência e elegância de uma modelo. Quando seu joelho está apenas alguém centímetros do assento do piano, seu rosto - que agora parece mais limpo que nunca (sem maquiagem alguma) - me observa de cima como as aves de rapina observam uma presa.

- Eu posso acompanhar você?

- Claro...

Senhorita senta ao meu lado, sem perceber que a distância entre nós é a mínima: Posso sentir seu braço roçando ao meu antes dela se quer fazer o que decidiu fazer: tocar o piano.

- Posso tocar uma diferente dessa, não?

Seu dedo pousa no teclado, sendo seguido pelo rosto, que parece fugir de mim.

- Essa se chama "Honeymoon"

Ela sorri, antes de mergulhar novamente. Seus dedos vão passeando por teclas e mais teclas. Durante alguns segundos, tudo que ouço é uma melodia doce e suave, quase lenta. Quando ela deixa a voz sair, a melodia finalmente se encaixa com todo o pró-música. Ela canta diferente de que a vez do carro, quando as batidas pareciam gélidas e secas demais: era como se a batida a obrigasse esconder a voz que tem. Agora não, ela canta facilmente, apenas com o piano. Observo a cena abobalhado, e esqueço toda vez que seus dedos passam calmamente para a ponta esquerda do teclado e seu braço acidentalmente risca o meu. Ela chega no teclado e sua potência vocal parece aumentar gradativamente. Seu rosto torna vermelho o que antes estava pálido, e seus olhos, mesmo vidrados em outros lugares pertinentes, parecem brilhar e dar vida ao meu redor. Eu não sei como cheguei aqui, mas quando ela toca as notas finais - acidentalmente escorrega na última vez, desafinando e fazendo um som esguio - e seu braço abraça o meu, fazendo me arrepiar. Soltando mais uma vez a palavra que dá o nome à música, a senhorita vira seu rosto para o meu. Seus olhos me tocam de um jeito diferente nesta vez. E de repente, parece que seu rosto caminha em direção ao meu. Só percebo o que acontece, quando seus lábios tocam o meu. Eles caminham, andam, correm junto ao meu enquanto sua mão passa no meu rosto, fazendo caricias ternas e sinceras. Não acompanho o meu pensamento, apenas sei que me afasto para longe do banco. Ela ainda está com o biquinho. Sua mão esquerda aperta o couro do assento. Quando ela realiza que não estou mais ao seu lado, abaixa a mão e me procura pela sala.

- Hazz?

Meus pés me levam para fora do quarto, fazendo com que eu chegue rápido demais no meu quarto. Tranco a porta e me jogo na cama. Seguro a cobertas pela ponta e me cubro, desde a ponta dos pés até o cobrir todo o comprimento do meu cabelo. Escuto passos apressados no corredor e me encolho mais ainda.

- Harry! Harry, abra essa porta! - Exclama a senhorita, batendo a porta incansavelmente. - Por favor, eu não queria.

Eu não quero ouvir mais nada... Eu preciso pensar e, merda, não sei. Quero que pare. Quero que pare. Por favor.

31 de 1989Onde histórias criam vida. Descubra agora