Capítulo 5 - Inês

29 2 0
                                    

- Simão?

Fiquei parada na entrada da sala, abobalhada, sem entender nada. Na sala de reuniões só estava homem. Simão se destacando de todos, de pé, virado de costas junto da janela. Muito alto. Muito mais alto que os outros ali presentes. Virou-se lentamente quando me ouviu chamar seu nome e desligou o celular que tinha na mão.

Meu celular parou de tocar.

Estremeci. Ergui o olhar de novo, buscando Simão. Ele não falou nada mas seu semblante duro e tenso, muito rígido, falou tudo.

Toda a minha adrenalina se varreu e meu corpo ficou subitamente pesado, trôpego. O cérebro também, como se incapaz de raciocinar. Sem mexer um músculo, varri a sala com um olhar medroso, como se me recusasse a ver o inevitável.

Jorge estava encostado de pé na parede, junto da tela de projeção. O rosto sombrio, carregado. As mãos enfiadas nos bolsos dos jeans. Um outro homem estranho estava sentado na ponta da longa mesa retangular.

Gil sentado ao meio da mesa. Cabeça baixa, os ombros curvados. O rosto anormalmente empalecido e o olhar vazio fixo no tampo de vidro. Estava ladeado por Alex e um outro homenzarrão musculoso, com aspeto de segurança profissional. Os dois de pé, muito direitos, autênticos soldados fardados em ternos escuros.

Então, a ficha caiu.

- Gil? - murmurei estarrecida.

Ele pareceu se encolher mais, baixando mais a cabeça.

Fiquei sem chão.

Quis gritar. Rejeitar a realidade. Negar a verdade na minha frente. Tudo menos isso. Estava preparada para tudo ... menos isso.

A promessa que fizera a mim mesma de não me deixar abalar por nada, completamente esfumada, caída por terra. Toda a minha raiva e ódio perdidos num labirinto de confusão e fragilidade. Dor também. Uma dor insuportável que me roubava o ar.

Simão aproximou-se e pousou o celular na mesa. Reconheci a capa personalizada do celular de Gil.

- A minha suposta amante ... afinal faz barba. - deitou um olhar de desprezo a Gil - Ou não ... o pulhazinho nem deve precisar de fazer a barba todos os dias.

Caçoou com desdém da face levemente sombreada pela penugem rala, cheia de falhas, da barba imberbe de Gil.

Eu mal escutava Simão. Estava completamente zonza, atordoada. Sem conseguir reagir. Sem conseguir desviar os olhos da figura de Gil. O meu mundo de novo virado do avesso. Traída pela pessoa em quem eu mais confiei. O colega de quem eu mais gostava, meu único amigo. Um amigo que julguei verdadeiro.

Era surreal. Como eu pude ser tão cega, tão idiota e ingênua?

- Vamos embora. - Simão falou, segurando-me pelo braço.

- Não! - reagi finalmente - Me deixem sozinha com Gil.

- Fora de questão. - negou autoritário - Vamos embora.

Soltei-me, num movimento brusco. Zangada com a vida, acossada pela verdade, sem paciência para aturar paternalismos.

- Saiam todos! - exigi.

- Não vai ficar sozinha com esse biltre. - Simão insistiu.

- Só dois minutos ... - olhei firme para Simão.

- Tudo bem ... - aquiesceu, dando sinal aos outros homens para se retirarem.

Gil continuava de olhos baixos.

Uma parte de mim parecia ainda não acreditar, como se meu cérebro não tivesse ainda assimilado verdadeiramente a realidade. Anestesiada com a descoberta. Inundada por uma mágoa corrosiva. A magnitude de tudo era insuportável. Instintivamente me sacudi, como se precisasse despertar e enfrentar a verdade.

- Olha para mim! - ordenei fria.

Obedeceu relutante. Com vergonha de me encarar, com medo de me enfrentar. Mas eu queria que ele me encarasse. Frente a frente. Olhos nos olhos. Eu precisava olhar para ele e aprender a reconhecer o rosto da falsidade, do engano, da mentira e da cobardia. Eu queria que ele olhasse no meu rosto e reconhecesse a imagem da desilusão e mágoa, mas sobretudo, queria que ele aprendesse como era a face da repulsa e do nojo. Visse a condenação no meu olhar.

Havia uma outra coisa que eu também queria. Uma coisa simples. Uma coisa muito simples a que eu tinha direito. Saber o porquê.

- Por quê?

Não respondeu. Apenas piscou os olhos já lacrimejantes.

- Por quê? - repeti dura.

Não o interpelei num tom de voz alta. Apenas voz dura. A minha voz o sacolejou.

- Eu tinha ... esperança da gente ... ficar junto.

- Ficar junto!?

- Eu queria ...

- Dar o golpe do baú? - acusei, sentindo minha voz tremer de raiva e ódio - Pensa que eu sou rica, né?

- Não! Não foi nada disso!

- Não!? - dei uma risada, mais nervosa do que irônica. - Ainda bem porque ... eu não tenho fortuna nenhuma. Sou apenas herdeira do meu pai ... uma entre vários herdeiros.

Abanou a cabeça, os olhos inundados de lágrimas, mas as suas lágrimas não me comoveram. A minha velha carapaça de indiferença estava de volta, mais dura e espessa que a pele de um rinoceronte.

- Eu ... eu só queria ... fi...ficar com você. - balbuciou.

- Ficar comigo ... - abanei a cabeça incrédula.

- Eu te amo ...

- Cala a boca! - rosnei entredentes.

Rosnei revoltada. Aquelas palavras eram suposto serem palavras imaculadas. Serem a verdadeira epítome dos sentimentos mais puros e bonitos. Não eram palavras para serem conspurcadas por uma boca suja, acostumada ao embuste e mentira. Não eram palavras para serem feiamente desvirtuadas por uma mente deturpada.

Naquele momento odiei aquelas palavras. Meu Deus, eu nunca na minha vida imaginei odiar escutar alguém me falar aquelas palavras.

- Você me torturou. Me torturou psicologicamente. - acusei cheia de rancor - Fez de mim um farrapo emocional.

Me calei, precisando respirar fundo para me recompor e acalmar. Gil não merecia sequer escutar a voz da minha mágoa e indignação. Mas merecia ouvir umas verdades.

- O pior de tudo, Gil ... é que você sabia como eu estava sofrendo. Mesmo assim continuou ... como um verme pestilento.

- Não quis fazer mal pra você ...

- Só que fez ... me fez muito mal. Quase me destruiu como mulher, como pessoa.

- Me perdoe, Inês ...

- Perdoar você? - gelei, empedernida - Nunca!

Virei costas e abri a porta.

Precisava ir embora. Deixar definitivamente para trás este capítulo feio de minha vida. Enterrar ele no rol das memórias esquecidas, para nunca mais as desenterrar.



Quer pagar pra ver? Volume IIOnde histórias criam vida. Descubra agora