Capítulo 7 - Inês

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Um dos seguranças de Simão levou meu carro. Eu fui com Simão. Não tinha condição de continuar no escritório naquela tarde. Minha cabeça estava toda fundida. Nem tinha certeza se queria continuar trabalhando lá. Não depois de tudo.

Simão dirigia em silêncio. Eu me refugiei no exterior, fitando pela janela do carro a movimentada paisagem urbana, sem na verdade ver nada. Varrendo simplesmente o olhar, tentando abstrair a mente. Não pensar em nada, não sentir nada.

Só quando entrámos na sinuosa estrada montanhosa, engolidos pela densa e luxuriante vegetação, dei conta que íamos a caminho de casa.

- Pode me recriminar. - quebrei o silêncio.

Simão olhou-me de relance e fixou de novo a atenção na estrada.

- Recriminar do quê?

- Ser uma bobinha. Uma perfeita idiota. - falei o que eu própria pensava de mim mesma - Não saber avaliar o caráter das pessoas. Confiar à toa. É isso que está pensando de mim ...

- Não estou pensando nada disso, Inês.

A sua mão grande pousou em minha perna, me apertando por uns segundos antes de retomar o volante. Senti a garganta arder, com uma vontade enorme de chorar e soprei forte, para baixo, em direção ao peito, para me controlar. Soprei tão forte que o ar morno de meu bafo se espalhou por meu peito.

- Podia ter acontecido comigo. Com qualquer pessoa ...

- Duvido ...

- Jorge me falou que Gil era o seu colega preferido. Eram amigos. Se davam super bem. - me fitou de novo - Ninguém espera ser traído por um amigo.

Meu queixo tremeu. As lágrimas inundaram meus olhos, turvando a minha visão. Limpei-as com raiva.

- Gostei dele desde o primeiro dia. - ri nervosa - Era meu melhor colega. Amigo. Trabalhávamos bem juntos. Era tão fácil falar com ele. Me sentia bem em sua companhia ... sempre vi Gil como gente boa. Sou mesmo trouxa!

- Não se culpe ... - sua voz rouca soou baixinho - Você é a vítima. Não esqueça isso.

- Vítima burra!

Dei um tapa em mim mesma, furiosa comigo. Enraivecida por ser tão ingênua, tão estúpida, incapaz de avaliar o verdadeiro caráter das pessoas.

Simão agarrou meu pulso no ar, quando estava prestes a desferir novo golpe em minha cabeça. Por segundos, o carro ziguezagueou pela estrada, até Simão controlar de novo o volante só com uma mão. A outra agarrando firme a minha.

- Está louca, Inês?

Mal teve oportunidade, encostou o carro. Só então desprendeu a minha mão, para agarrar meu rosto pelo queixo, virando-me para ele.

- A última coisa que deve fazer é culpar-se.

Falou-me firme, autoritário. O olhar azul impondo as suas palavras com dureza e determinação.

- Inês, você não foi a única a se enganar com esse cara.

- Não? - revirei os olhos, irônica.

- Jorge ficou parvo quando eu lhe contei. Ele nunca imaginou que seu colega fosse capaz de fazer ... tamanha barbaridade. Ele também considerava Gil uma boa pessoa, bom caráter, bom funcionário.

Suspirou e recostou-se no banco dele.

- Na volta, o cara nem é assim tão má pessoa ... - falou, fazendo um gesto com a mão como quem diz "quem sabe"?

- Pirou?

Simão deu uma risadinha e encarou-me de novo. Sorriu-me meigo. Toda eu estremeci, abalada por aquele sorriso. Não me recordava de Simão alguma vez me sorrir assim desse jeito tão meigo. Nem mesmo quando a pipoquinha nasceu.

Até esqueci Gil, completamente embriagada com seu sorriso.

- Pessoas de bem também fazem coisas ruins. - comentou, dando um pequeno encolher de ombros - A maldade não é apanágio apenas das pessoas de má índole.

Franzi a testa. Claro que eu sabia que na vida não existia só o preto e o branco. A vida era feita de uma infinidade de cores. A essência humana era cheia de complexidades. Mesmo assim ... como alguém de bem podia ser capaz de tamanha maldade?

- Fala isso porque não sofreu na pele o que eu sofri. - resmunguei, um tanto sentida.

Seu semblante tornou-se subitamente sério. Um laivo de tristeza bailou por seu olhar índigo.

- Acha que eu não sofri?

Soou a desabafo. Não a pergunta. Um desabafo murmurado num tom roucamente dorido. A verdade contida naquele murmúrio rouco abalou-me.

Céus, só nesse momento me apercebi que ele também foi vítima. Também ele sofreu. Sofreu quando eu pedi o divórcio. Sofreu quando eu disse que cansei dele. Sofreu com todo o meu silêncio e orgulho. Sofreu na ignorância e incerteza de me perder, perder a sua família. Eventualmente sofreu com o meu próprio sofrimento, nos momentos em que eu não consegui esconder.

Sofreu porque ... me amava.

Simão revirou ligeiramente os olhos como se confirmando tudo o que eu estava pensando.

Aí a culpa me invadiu, vindo com tudo.

Soltei o cinto de segurança e me joguei nele, abraçando-o muito forte e apertado. Encostei a face em seu pescoço e inspirei fundo seu perfume amadeirado. Escutei sua garganta engolindo o ar, senti o pomo de adão se deslocar. Também ele tenso de comoção.

Deixei as lágrimas brotar livres, sofrida por saber que ele também sofreu. Simão me envolveu em seus braços, cruzando-os em minhas costas, estreitando-me forte, sustendo o meu corpo sacolejado pelos soluços, amenizando a minha dor. A minha e a dele.

- Shhh, diabinha ... já passou.

Nunca como naquele momento o amei tanto.



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