Capítulo 3

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Depois de cochilar mais um pouco, deixo o meu despertador ligado para não atrasar minha mãe no serviço.

Júlia ainda insiste em me mandar mensagens, sei que deveria responder, porém não estou afim de ouvi-la falar sobre aquele cara loiro pela vigésima vez nas últimas quatorze horas. Ela é muito sentimental e apesar de ser minha amiga, eu não gosto disso. Nossa amizade era boa até eu decidir mudar os roteiros.

Depois que conheci Samuel, eu comecei a não dar a devida atenção a ela e nossos assuntos não eram mais os mesmos. Por isso, nos últimos dias, ela quis me acompanhar nas aventuras noturnas. Não gostei nada disso, claro. Seus pais obviamente não sabem, e como são narcisistas nem podem imaginar que isso acontece.

Mesmo que seja uma péssima atitude, comparar minha relação com meu avô á relação dos pais da Júlia com ela me causava um certo alivio, mesmo que meu pai de verdade vive na estrada ficando longe de nós. Convenhamos que a criação que meu avô me deu deixaria a do meu pai nos chinelos.

Meu avô me ensinou muitas coisas e a maioria delas se resumia em ver o melhor nas pessoas. Ele sempre foi alguém altruísta e bondoso, apreciava a vida e sempre via tudo do lado positivo. Ele me ensinou a ser assim e eu era exatamente como ele. Era.

Ser bom não te torna alguém melhor e sim em alguém vulnerável. E meu avô era vulnerável demais.

O alarme toca e eu levanto do sofá da sala.

Entro no quarto de minha mãe e ela está deitada de bruços com uma das pernas dobradas e as mãos sob o travesseiro. Como já tinha imaginado ela está cansada, por isso, deixei a janta pronta na cozinha. Não sou muito de cozinhar, mas ela precisa da minha ajuda.

—Mãe, você precisa ir trabalhar. — A toco levemente pelos ombros. Seu cabelo curto e castanho está solto e bagunçado. Seu rosto redondo dono de poucas rugas era limpo e macio. Os seus lábios pontiagudos eram um charme quando passava batom vermelho e, apesar de não ter muito tempo para se arrumar, ela é linda.

Minha mãe só trabalha porque o salário de meu pai não cobre muito os gastos. Eu ainda desconfio de que ele tem outra família por aí, mas ela não acredita. É muito estranho pois mesmo ele trabalhando como um escravo o dinheiro não dá, e um caminhoneiro não fica meses na estrada não. É uma forma dele nos abandonar indiretamente. É um idiota.

Minha mãe trabalha naquele posto de gasolina há anos. Eu disse várias vezes para ela deixar aquele serviço de lado, pelo menos trocar de turno ou algo do tipo, mas ela negou. Ser adulto é muito chato; ela tem que trabalhar a noite e dormir de dia, e nunca aproveita a vida. Raro é o dia em que ela se arruma na sua folga, o dia em que eu também ''folgo'' das festinhas e das drogas, isso até ela dormir. Nunca sai, pois prefere passar seu tempo comigo: a filha dos sonhos, pelo o que ela me chama.

Ela não conversa com mais ninguém além de mim e os clientes do posto. Também não se interessa mais em passear pelo shopping ou ir ao calçadão da cidade para fazer compras em lojas de bijuterias; ela ama brincos, por sinal. Fico triste quando a vejo cansada, desanimada, e sem comer muito. Aliás, ela emagreceu bastante desde que... bom, desde que tudo aconteceu.

A ausência do meu avô e a do meu pai afetou-a bastante, e, mesmo vendo meu pai alguma vez a cada cinco meses - demora um tempo longo - ela não se sente totalmente estruturada, sem ele.

Eu acho que ela se vira muito bem sem ele.

Meu pai é um bosta... não sei qual o problema dele comigo e para falar a verdade. O que são seiscentos reais por mês perto do sacrifício que minha mãe faz toda noite?Eu sei que ser motorista é cansativo e o trabalho dura praticamente o dia inteiro, mas é por essa mesma justificativa que eu não acredito que ele somente ganha mil reais, sendo que, em determinadas vezes, ele até trabalha dois meses seguidos. Isso para mim se tornou algo de se desconfiar. 

Rapidamente minha mãe abre os olhos vermelhos e inchados e se levanta. Eu saio do quarto para deixá-la trocar em paz. Não me comunico muito com ela já que nossos dias se resumem nessa rotina. Para falar a verdade, é até melhor assim.

Vou até a cozinha e pego o prato que minha mãe deixou pronto para mim no almoço. Eu estava com sono e por isso não comi, mesmo estando faminta. Com a fome que estou sentindo poderia comer uma lanchonete inteira, incluindo até um creme de alho, que eu odeio.

Depois de um tempo, eu termino de comer, coloco o meu prato na pia e começo a lavar a louça. Logo sinto um cheiro doce e minha mãe aparece na cozinha com o uniforme do posto de gasolina que ela trabalha e seu cabelo preso em um rabo de cavalo.

—Que bom que deixou a comida pronta. — Ela sorri admirando o prato que continha batatas fritas, arroz, feijão e uma salada. Não tiro os olhos da louça na pia enquanto pego a bucha e começo a esfregar os pratos formando muita espuma.

Ela pega um garfo na gaveta e se senta na mesa.

—Não precisa limpar a casa mãe. Pode deixar que eu me viro. — Digo e ligo a torneira, enxaguando toda a espuma.

—Você estava cansada filha. — Ela diz em meio a uma garfada de arroz.

—Não mãe, para de me mimar, eu não faço nada da vida. — Por mais ruim que eu seja não posso explorar mais a minha mãe do que já exploro. Seria demais até para mim.

Ela fica em silêncio enquanto termina de comer e eu pego um dos copos de vidro e bebo água.

—Um rapaz bonito com uma corrente de cadeado passou no posto de gasolina hoje dizendo que te conhecia. — Ela diz em meio a garfadas de arroz e eu engasgo. Começo a tossir feito uma louca e acabo derrubando o copo no piso limpo do chão. — Você tá bem? — Ela corre até mim e eu levanto as mãos insinuando para ela que sim.

—Deixa que eu limpo. — Digo quando a vejo agachando para pegar os cacos. —O que ele disse? — Pergunto.

—Nada demais. Só que era seu amigo e adoraria vir aqui em casa um dia. —Ela volta a sentar-se.

—Que horas foi isso? — Jogo os cacos no lixo.

—Hoje cedo, lá para as seis ou sete horas por aí. — Ela volta a comer.

—Ele me pareceu ser um cara legal. — Ela me observa varrer o resto dos cacos de vidro do chão. Samuel ser legal? Até parece.

—Você nem imagina. —Sussurrando pensando alto.

—O quê? —Ela franze a testa.

—Nada. — Digo e termino de jogar os cacos no lixo, colocando o saco dentro de uma caixa de papelão.

—Se ele for seu namorado pode me contar, você já é maior de idade. — Ela se encosta na pia e lava o seu prato.

—Não mãe... Não. —Reviro os olhos e tento não xingar.

—Tudo bem... vou ir para o trabalho. Boa noite. —Ela sacode as mãos e me dá um beijo na bochecha e eu tento desviar, mas não consigo.

Termino de varrer os cacos no chão pensando qual realmente eram as intenções de Samuel. 

Eu Não Estou SóbriaOnde histórias criam vida. Descubra agora