Capítulo 14

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 Alguns dias depois... 

Estou andando debaixo do sol quente da tarde.

Perdi as contas de quantas pedras de crack usei.

Depois daquelas quatros primeiras pedras, eu não consegui mais ficar sem, e horas depois já estava na minha décima.

Sim, eu sei. Eu só tinha quatro, mas é fácil roubar de um bando de drogados ambulantes.

Por isso, não consegui evitar. Depois da primeira, foi difícil não usar o resto. Jane disse que vicia rápido, mas eu não pensei que seria tão rápido assim.

Estou terminando mais uma, e estou morta de calor. Essa roupa de Júlia é feia demais, e está suja demais. Não tenho como trocar, nem roupa eu tenho. Ou talvez possa esperar uma brecha para roubar de alguma dessas lojas abertas que estou passando em frente.

Uma ou duas peças não vão fazer falta para eles, não é?

As filhas da puta estão me olhando, todos eles. Há muitas pessoas aqui, acho que estou no centro. Comecei a andar depois que roubei mais algumas pedrinhas, sei lá, me deu vontade de dar uma volta por essa cidade linda. Me cansei de passar os últimos dias naquele lugar, eu saia algumas vezes para encontrar um homem, mas era só á noite. Ela me oferecia dinheiro, e eu precisava. Depois de ter vendido o meu celular para uma loja de aparelhos usados, eu consegui uma boa grana para me manter por um dia, mas só por isso. Então, quando aquele homem apareceu numa noite calorosa em um carro preto, me vendo fumando aquele cachimbo, apenas de sutiã e calcinha, eu não neguei. Ele não era tão feio e nem tão velho, ele só precisava de uma distração, e eu era um alvo fácil, ainda mais vulnerável.

Agora estou na frente de alguns prédios. Prédios são tão altos, e tão bem estruturados. Seria legal estar lá no topo, observando a cidade. Imagina só eu poder pular de lá e voar? Ia ser irado. Mas não posso, esse prédio pode ser perigoso.

Nunca se sabe o que se encontra lá dentro.

Espera! Já sei, já sei. Há pessoas fazendo bebês... futuros papais e mamães, prestes a fazer um bebê fofinho que só chora, dorme e faz cocô. Mas é isso que somos. Uma projeção feita com especialidades em fazer porra nenhuma e dar trabalho para os outros.

Falando em bebês, tem uma criança sentada ao lado de uma mulher em um banco de cimento, no meio da avenida. Ela está olhando para mim com os olhos arregalados e segurando a bolsa junto de si. Eu acho que ela precisa de ajuda com aquilo, ela não está conseguindo segurar o bebê e suas bolsas. Decido ir ajudá-la.

Me aproximo, atravessando a rua e ela se retrai.

— Precisa de ajuda? — Pego a bolsa de suas mãos, mas ela a puxa de volta. Ela é tão bonita, seus cabelos são platinados na altura do ombro, bem diferentes da garotinha que está escondida com a cabeça afundada em seu ombro. Ela não diz nada, apenas está com os olhos cor-de-mel arregalados. — Oi garotinha! — Me abaixo para ver o rostinho da garota, que já está virada. — Você é tão fofinha. — Digo observando o lacinho cor-de-rosa com pérolas em seus cabelos pretos.

A mulher me olha, e algumas pessoas sentadas em outros bancos daquela ciclovia cheia de árvores ipês também.

— Olha aqui, tem que me prometer que quando você crescer, não vai se tornar igual a titia, ok? — A garotinha me olha, e quando vou acariciar seu rostinho, sua mãe a afasta. — Espero que seu papai não seja um cuzão e te trate como a princesinha que você é.— Sorrio, mas sua mãe faz cara feia.

— Cuxaum.— A garotinha repete e não posso conter a gargalhada.

— Isso mesmo, cuzãoooo. — Repito a palavra lentamente para que a fofinha possa aprender, ignorando as reclamações de sua mãe comigo.

— Saia daqui moça. Você está incomodando os cidadãos. — Um homem alto, cuja roupa está com o nome ''segurança'' estampado, me toca.

— Eu vou chamar meu primo policilau pra te pegar, senhor. — Enrolo as palavras, e cruzo os braços imitando-o.

— Não vou falar duas vezes. — Sua voz grossa arrepia meus pelos em sua tentativa de me passar medo. Deu certo.

— Cuzão. — Reclamo baixinho e mostro a língua.

— Cuxaum!— A garotinha grita e aponta para o homem. Sua mãe logo a repreende e eu dou risada.

— Tchau bebê. — Saio saltitando pela longa ciclovia enquanto ouço a garotinha repetir a palavra que acabou de aprender diversas vezes.

Olha os pássaros! Todos eles voando juntos no céu.

— Cuidado pássaros! — Grito para que eles possam me ouvir, e dou risada imaginando-os se chocando contra o vidro dos prédios grandes. Coitadinhos, isso seria demais!

Continuo andando e brincando com algumas pessoas que passam ao meu lado e me olham feio.

Nunca percebi que a cidade fosse tão cinza, até parar em frente a um grande gramado, com uma grande casa branca ao fundo. O lugar é maneiro, e muito bonito. Fico em frente do lugar por alguns minutos, observando os grandes coqueiros e as flores roxas plantadas pelo gramado.

Não consigo deixar de sorrir e apreciar.

Aqui é o paraíso? De qualquer maneira, deve ser parecido.

Os portões estão abertos e há algumas pessoas saindo da casa ao fundo, e quando me dou conta, já entrei pelo portão. Olho ao redor de tudo isso, há um pequeno lago cercado de pessoas com vestimentas brancas, acompanhadas por outras pessoas com roupas normais.

Observo as pessoas que estão saindo da casa, elas estão sorrindo e também estão acompanhadas por outras de roupas brancas.

Elas parecem felizes.

Depois de várias pessoas saindo da casa, eu percebo que meu olhar estava perdido em outras flores rosas ali presentes. O local é enorme, mas até agora eu não entendi o que exatamente é.

Pássaros voam baixo ao meu lado, e eu me viro para acompanhá-los. Até sentir um toque nos meus ombros.

— Olá, no que posso ajudar? — Sinto uma voz suave vinda de trás de mim. Viro-me lentamente até perceber que há uma mulher baixa com a roupa branca me olhando de cima a baixo.

Mas meu olhar não é direcionado nela. Meu olhar é direcionado em uma outra mulher vestida com uma blusa rosa conversando com alguém, ela está sorrindo e com os cabelos castanhos amarrados em um rabo de cavalo.

Estou imóvel, e nem se quer consigo responder a baixinha que corre de volta para dentro da casa e grita, chamando por alguém. Seu grito chama a atenção, a atenção que eu não queria.

Minha mãe se vira lentamente, e seu sorriso se desfaz assim que ela me reconhece, por trás desse caos que eu estou.

Merda. Merda. Merda.

Estamos encarando uma à outra, e mesmo longe, consigo ver que ela está tremendo, e seus olhos estão vermelhos, cheios de lágrimas. Tudo está acontecendo em câmera lenta quando dois seguranças me pegam pelo braço e arrastam a usuária de crack invasora para fora. Enquanto isso, eu ainda estou a observando, com a culpa em meu peito, que cresce mais ainda quando ela grita, apavorada, e se joga de joelhos sobre o gramado, chorando e desmoronando o resto do meu coração já destruído.

Sou jogada para fora daquele lugar, enquanto meus olhos ainda estão fixos nela. E a vejo sendo acolhida pelas pessoas que a cercam, ainda chorando.

— Ela é a minha filha! — Ouço seu grito em meio à confusão que minha mente está. Eu estraguei tudo. Eu peguei o pouco da felicidade que ela havia recuperado em seu frágil emocional e simplesmente o joguei pro alto, quebrando-o em pedacinhos no chão, no mesmo momento em que ela caiu de joelhos, completamente magoada.   

Eu Não Estou SóbriaOnde histórias criam vida. Descubra agora