Capítulo 32

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                                  Diogo
 
Acordei bem cedo. Precisava conversar urgentemente com Milena, dizer a verdade sobre o nosso namoro. Fui um canalha completo, pensando apenas no dinheiro e esqueci dos sentimentos dela. Sentia-me envergonhado, um vagabundo da pior espécie. O que a ambição fez comigo? No que me tornei? Eu já tinha dinheiro  e queria mais, sendo um homem arrogante, narcisista, soberbo e sem humildade nenhuma. Mas isso iria mudar. O Diogo que escondeu seus sentimentos e criou um casulo, forjando um outro Diogo que não existia, totalmente falso, deixava de ser real. O medo de ser dominado por outras pessoas, devido ao trauma que sofri com a minha mãe, findava-se agora,  além de sempre viver na sombra do meu irmão mais velho Ezequiel, carregando uma culpa que achei que me pertencia. Na verdade, sempre fui inocente.
         
Liguei para o celular de Milena, entretanto, a chamada era interrompida imediatamente. Ela não queria conversar comigo. Muito compreensível. Insisti mais duas vezes e nada. Só havia uma única opção, vê-la pessoalmente.
         
Entrei no carro e fui ao meu destino.
         
Durante todo o trajeto, fiquei meditando em como dizer sobre as atrocidades que cometi, não encontrando o modo certo de falá-las, acho que seria na hora que estivesse frente a frente com a minha ex-namorada, encontrando as palavras corretas.
         
A mansão apareceu logo à frente. Estacionei. Desci do carro, encaminhando-me até a entrada. O segurança me viu e logo comentou:
         
- Senhor Diogo, me desculpe, mas você não é mais autorizado a entrar aqui.
         
- Eu entendo. Eu só queria falar com a Milena.
         
- Sinto muito. Ela mesma que ordenou o seu bloqueio.
         
- Será que pode, pelo menos, enviar um recado?
         
- Fale.
         
- Diga que ela saiu tão abruptamente do meu apartamento que nem tivemos como conversar direito. Eu fui um ordinário completo, por isso, desejo ser honesto e não esconder mais nada. E não quero criar desculpas ou qualquer argumentação apenas para fugir da minha culpa, sou responsável pelos meus atos.
         
- Não se preocupe, vou dizer. Aguarde aqui.
         
O segurança sumiu da minha vista.
         
Uma agonia tomava conta de mim enquanto eu esperava a decisão final. Nunca imaginei que seria barrado na entrada como se fosse um estranho. Se fosse analisar friamente, agi como um estranho todo esse tempo, não mostrando o meu caráter e nem sendo sincero. Fui tão cego. Deixei a beleza e o status tomarem conta e esqueci do que realmente era importante: o amor. Não o amor eros, mas o ágape. Logicamente, havia o amor eros entre homem e mulher, só que o ágape, esse sentimento incondicional de sacrifício e de dar a sua vida pela outra, amando o próximo como a mim mesmo, fora levado para debaixo do tapete.
         
O segurança retornou.
         
- Ela te liberou.
         
- Sério?
         
- Sim. Ela te espera no jardim.
         
- Obrigado.
         
Ele não disse mais nada.
         
O portão foi aberto.
         
Caminhei até o jardim enquanto observava aquela enorme mansão que rivalizava com a dos meus pais; imponente, poderosa e exibindo todo o seu luxo e riqueza para quem quisesse ver. Lembrei de quantas vezes eu tinha ido ali, em festas e jantares familiares, tudo apenas pelo dinheiro.
         
Ao entrar no jardim, Milena já aguardava, de pé, atenta a minha aproximação. Quando cheguei mais perto, não falei nenhuma palavra. Precisava observá-la por inteira, vê-la como realmente era, não através da minha ambição. Era uma mulher linda, de uma delicadeza única. Seus cabelos pretos eram lisos e escorriam para os ombros, chegando até a metade das costas. Seus olhos azuis brilhavam mediante a luz do sol, deixando-o numa cor vívida e oceânica.  Meu momento de admiração foi interrompido, pois minha ex-namorada não ficou muito contente ao ficar sendo só observada.
         
- O que você quer, Diogo? Você veio só ficar me olhando? – perguntou ríspida.
         
- Na verdade, não – respondi.
         
- Diga logo! Aquelas palavras que o segurança falou foram muito convincentes! – O convincentes estava carregado de ironia. – Foi bom ter vindo. Todo cafajeste precisa dar uma explicação, uma necessidade de se defender. Assim, vai ser mais rápido cortar a nossa relação. Aquele dia, não dei a chance de mentir pra mim. – Uma fúria exalava dela, despejando toda a indignação acumulada.
         
Fiquei surpreso. Nunca a vi tão fora de si, ao contrário, uma ternura e meiguice sempre exalaram em cada atitude dela, além de ser gentil e solícita.
         
- Eu não vi fazer isso. Eu errei, e peço desculpas. Fui um cafajeste.
         
- Belas palavras, Diogo – Milena falou fria. – Aí, eu te perdoo e a gente namora de novo. Então você continua com as suas canalhices.
         
Ela ainda não acreditava em mim. Não podia culpá-la. Sempre menti, enganei e agi de modo galinha.
         
- Eu não quero mais namorar com você. Eu nunca te amei. Tivemos um relacionamento à base da mentira, por interesse ao patrocínio milionário de seis milhões de reais que seu pai havia me prometido. Desde o nosso primeiro encontro no cruzeiro foi tudo interesse. Chega disso.
         
Milena estava espantada, não esperava algo tão sincero ao ouvir essa confissão.
         
- O quê? – perguntou chocada. – Você nunca me amou... – balbuciou ainda tentando assimilar. As lágrimas começaram a cair dos seus olhos. – Por que está contando isso agora? Quer me ver sofrer? – As perguntas saíam pastosas por causa do choro.
         
- Não. Eu precisava dizer a verdade.
         
Segurei o rosto dela gentilmente. Pensei que ia ser rejeitado, entretanto, permitiu-me. Limpei uma lágrima do seu olho que escorria através da bochecha com o dedão.
         
- Durante muito tempo, escondi o meu verdadeiro eu através de outro homem que nunca existiu. Esse Diogo que você namorou, conviveu e amou ou ainda ama, era apenas uma casca que criei para esconder a dor. Mas, uma mulher que realmente amo, despertou o Diogo dentro da casca. O amor me salvou.
         
- E, quem é ela?
         
- Júlia. A mesma que forcei a me beijar no acampamento e me denunciou no programa da Samanta Oliveira
         
Não terminei por aí. Revelei o passado da minha infância e juventude, não omitindo nada, contanto os horrores que vivi. Milena arregalava os olhos à medida que as palavras saíam, parando de chorar e atenta a tudo. Os detalhes foram narrados minuciosamente, até chegar ao romance entre eu e Júlia.
         
- Você nunca me contou essas coisas – Milena falou atordoada por tantas revelações. – Não passava na minha cabeça que um homem tão bem-sucedido, cheio da fama, e uma grande quantidade de dinheiro, pudesse ter uma história dessas. Isso foi o mais sincero que disse para mim durante o tempo que estivemos juntos.
         
- Foi doloroso superar.
         
- Entendo. Não é fácil lidar com as desgraças que ocorrem na vida. Há coisas que são complexas e dolorosas.
         
- Concordo.
         
- Quero que você seja feliz. Obrigada por ser honesto comigo, foi uma atitude muito nobre da sua parte.
         
- Imagina. Seja feliz também e encontre um amor de verdade.
         
- Acho que ainda está longe de acontecer.
         
- Por que?
         
- Sei lá. Não sei quando estarei pronta para me relacionar com outra pessoa.
         
- Acredito que conseguirá. Você é uma mulher incrível.
         
- Assim fico sem graça.
         
- Não fique.
         
- Espero que meu futuro homem não queira o patrocínio também – brincou.
         
- Qualquer coisa, só me ligar que eu espanto o sujeito – exibi um sorriso.
         
- Pode deixar.
         
Milena sorriu também. Não havia mais aquela raiva quando a encontrei alguns minutos atrás. Uma paz tomava conta dela. Estávamos em paz um com outro e as diferenças resolvidas.
         
- Só tenho mais uma coisa a dizer.
         
- O que seria?
         
- Como estou sendo sincero, não posso suprimir nem uma vírgula. Seu pai sabia sobre minhas puladas de cerca. Ele me ameaçou dizendo que se eu não me casasse com você, eu não teria o patrocínio. Além disso, queria que eu deixasse a vida de modelo e assumisse a empresa da minha família só para que você tivesse conforto e muita grana.
         
Milena arregalou os olhos estarrecida.
         
- Desgraçado! – ficou irritada novamente. – Por que não pediu logo o dote? Era muito mais fácil!       
         
- Fiz mal em contar.
         
- Não, não fez. Foi bom saber. Vou ter uma conversa muito séria com meu pai.
         
- Bom. Acho que está na hora de nos despedirmos.
         
- Verdade. Honestamente, sempre imaginei que casaríamos e teríamos filhos.
         
- Perdoe por frustrar os seus sonhos.
         
- Está perdoado. Não existe mais nada entre nós que precisamos resolver.
         
- Obrigado.
         
- Adeus, Diogo.
         
Fui embora.
         
Enquanto andava em direção a saída, uma sensação de liberdade tomava conta. A liberdade de ser quem eu era, sem barreiras. Agora, poderia desfrutar de mim mesmo.
         
Deixei a residência e entrei no carro. Quando eu estava prestes a dar partida no motor, o meu celular tocou. Na tela, o número do meu pai. Não queria atendê-lo. Diria, com toda certeza e, como sempre, que eu precisava assumir a empresa. O mesmo discurso que tudo era para o bem dos negócios da família. Interrompi a chamada.
         
Virei a chave na ignição, me afastando da mansão.
         
O celular tocou de novo. Era o meu pai, outra vez, me chamando. Não acreditei. Será que não me deixaria sossegado?
         
Então lembrei do que a Júlia havia me dito: “Você precisa pedir desculpas para a Milena e ajudar o seu pai.”
         
Senti-me arrependido. Não sei por quê. Só de conversar com o meu pai trazia dor e sofrimento dentro de mim. Talvez, o modo como Júlia tinha dito aquelas palavras, que soaram tão justas e sensatas, me constrangeram.
         
Respirei fundo. Atendi.
         
- Filho? – A voz dele soou triste e sem fôlego. Algo não estava certo. – Que bom que você atendeu. Você precisa vir para casa com urgência!
         
- O que aconteceu?
         
Uma preocupação tomava conta, de repente, pois o meu pai jamais falara com tanto desespero assim, carregado de medo. Ele sempre fora confiante e destemido.
         
- Por favor, eu preciso de você – lutava para pronunciar as palavras, num modo ofegante e exaustivo.
         
Logo em seguida, um choro surgiu do outro lado da linha.
         
Um senso de urgência chamejou dentro de mim, dizendo:
         
- Tô indo, pai! Aguenta firme!
         
Encerrei a chamada.
         
Precisava ir rápido. Havia algo fora do normal e eu tinha que  saber o que era.
 
                                  ***
 
Dirigi o mais rápido que pude. Uma ansiedade gritava dentro do peito, principalmente a cada sinal vermelho dos semáforos da cidade que eu era obrigado a parar. Estava com uma vontade de pisar no acelerador e ir embora, não me importando com a multa. Meu pai precisava de ajuda.
         
Quando avistei a mansão, uma agonia comia as minhas entranhas, precisava entrar logo.
         
O segurança me viu e liberou passagem.
         
Ao fechar a porta do carro, corri que nem um louco até dentro da residência.
         
Avistei o meu pai sentado no sofá. Os empregados estava em volta dele, aflitos. Ao me verem, rodearam-me como moscas.
         
- Senhor, Diogo, ainda bem que chegou – disse a empregada nervosa. – Seu pai não está bem.
         
Pedi licença a todos e fui em direção a ele. José Roberto transmitiu alívio quando constatou que eu estava ali.
         
- Filho... Roubaram a nossa fortuna... nossos bens... Sua mãe... sua mãe... foi presa...
          
- Como assim? Quem roubou? Por que Isabela foi presa? – perguntei tentando entender o que ele queria dizer.
         
- Terceiro distrito da polícia...
         
Ele desmaiou.
         
- Pai! – gritei.
         
Olhei para o motorista particular da família que olhava para o que acabara de presenciar, preocupado.
         
- Mário, me ajude a pôr o meu pai no meu carro, por favor! – disse desesperado.
         
Num instante, o motorista foi ao meu encontro, ajudando-me a levar papai. Mais dois empregados da casa resolveram me auxiliar, o jardineiro e o cara que limpava a piscina.
         
Pomos José Roberto no banco do passageiro, colocando o sinto de segurança.
         
Numa agilidade impressionante, sentei na poltrona do veículo e fui catando os pneus até o hospital.
         
Eu não entendia que, até umas horas atrás, meus sentimentos em relação ao meu pai eram de desprezo e amargura, entretanto, ao ouvir a sua voz no celular e o choro que ele emitiu, despertou algo estranho. Não sei se fora compaixão ou de presenciar um homem de negócios tão seguro de si, numa situação como essa.
         
Era remorso? Um amor suprimido? Desejo de ser amado?
         
Quando analisei mais profundamente, entendi o que realmente estava acontecendo. O meu verdadeiro eu manifestara um  sentimento diferente. Um desejo de ter um pai, reconciliar-se com uma pessoa que fora ausente durante a minha vida inteira. Uma vontade de ser filho e ter um pai, finalmente. Tudo isso, moveu-me a ajudar José Roberto Mendes Guimarães, que construiu um grande império, um poderoso magnata cheio da grana.
         
Não se pode fugir do passado, pois seu fantasma continua a perturbar enquanto não se resolve o que foi deixado lá trás. As mágoas, as frustrações, as brigas corroem o ser humano como um veneno, intoxicando cada parte do corpo até tornar-se numa pessoa amarga. O passado reverbera dentro de qualquer ser enquanto não aceita lidar com isso de uma vez por todas.
         
Parece, que, finalmente, o acerto de contas do meu passado chegava cada vez mais perto, pois muitas questões não resolvidas eram como um cancro, infeccionando sem trégua.
         
Chegando ao hospital, corri à recepção pedindo por socorro. Expliquei que o meu pai estava desmaiado dentro do veículo. Os médicos foram avisados e uma maca foi disponibilizada para transportá-lo. Eles me perguntavam o que havia ocorrido. Não sabia o que dizer, porque o encontrara não muito bem, abalado. Falei que ele tinha uma doença muito séria chamada Leucemia Mielogênica Aguda, e fazia tratamento.
         
Tive que ficar na sala de espera, louco por notícias.
         
Liguei para a Júlia, falando o que sucedeu. Ela ficou muito preocupada. Pedi que viesse fazer companhia, não pensando duas vezes. Dei o endereço e aguardei ela aparecer.
         
Enquanto isso, ruminei as palavras ditas pelo meu pai. Ele tinha sido confuso ao dizê-las. Uma coisa apenas me chamou a atenção, Isabela. Ela não estava lá quando cheguei. Será que ela fora presa? Acreditei que sim. Ainda mais por ter ouvido “terceiro distrito da polícia.” Uma merda das grandes estourara. Eu precisava tira isso a limpo.
         
Júlia chegou. Um alívio tomou conta. Tinha alguém que pudesse me fazer companhia.
         
- Ju, estão tão aliviado por ter você  aqui – disse.
         
- O que está havendo? – perguntou preocupada.
         
Expliquei. Ela ficou abismada.
         
- Que terrível.
         
- Eu sei - havia pesar na minha voz -, por isso preciso descobrir tudo. Só estou esperando o médico me passar o diagnóstico do meu pai.
         
Parecia uma eternidade até que eu pudesse ter alguma posição sobre o seu estado de saúde. A preocupação não saía de dentro de mim. Comecei a lembrar o quão insensível fui com ele quando descobri a terrível doença. Mesmo que o carinho que nunca recebi, a atenção necessária e o amor não recebidos, jamais poderia ter retribuído desta maneira. Uma dor sufocava-me por inteiro, arrependido. O pior eram as memórias negativas que se assomavam, numa mixórdia, assombrando-me de modo horrível. Quantas vezes eu desejava apenas um abraço. Talvez, isso pudesse ter mudado os passos que dei. O único conforto estava bem ao meu lado, Júlia. Ela fazia cafuné tentando me acalmar e acalentar a aflição que golpeava o meu coração.
         
O doutor finalmente apareceu. Levantei num rompante que assustou Júlia, aproximando-me dele.
         
- Senhor Diogo, fizemos os exames no seu pai e identificamos o problema.
         
- E o que é?
         
- Além do diagnóstico que o paciente já tem, a pressão dele estava muito alta, por isso que ele desmaiou.
         
- Ele está melhor?
         
- Sim. Já o medicamos. O caso dele está estável.
         
- Posso vê-lo?
         
- Claro. Por favor, me acompanhe.
         
- Minha namora também pode ir?
         
- Só é permitida a entrada dos parentes.
         
- Tudo bem.
         
Virei-me para Júlia.
         
- Já volto.
         
- Tranquilo, amor. Não precisa ter pressa.
         
Deu um beijo rápido nela e segui o doutor.
         
Meu pai estava deitado. Era estranho a imobilidade daquele homem. Cresci ao observá-lo na ativa, sem nunca parar. Agora, encontrava-se quieto, mudo e sem poder se mexer. A vida tem as suas reviravoltas,  porque num momento, estamos de uma forma e, de repente, estamos de outra.
         
Toquei as mãos de papai. Estavam frias. O cateter intravenoso pingava o líquido que ajudava a convalescê-lo.
         
Chegou a hora de compreender o que estava acontecendo. Algo muito terrível se abatera sobre o meu pai e sobre a minha mãe. Não havia mais tempo a perder, saí do quarto e voltei à sala de espera.
         
Júlia me abraçou.
         
- Como que foi?
         
- Desconfortável.
         
- Eu sei. Quando vi minha mãe inconsciente, tive a sensação que o mundo desabava num instante.
         
- Verdade.
         
Olhei fixamente para ela.
         
- Preciso resolver algo de extrema importância. Se quiser, te deixo em casa antes.
         
- Pelo seu semblante é muito sério. Vai. Eu pego uma Uber.
         
- Obrigado. Obrigado, mesmo. Você é maravilhosa.
         
- Imagina. Estamos juntos para o que der e vier – ela sorriu.
         
- Te amo – tentei esboçar um sorriso que mais pareceu uma careta.
         
- Também.
         
Corri loucamente, deixando o hospital.
         
Dentro do carro, pesquisei na internet: terceiro distrito da polícia. Rapidamente encontrei, pus no GPS e segui caminho.
 
                                   ***
 
O terceiro distrito policial desabrochou a minha frente. Uma construção grande onde cabia várias viaturas de polícia dentro do estacionamento. Desci do veículo. Esperei alguns instantes, procurando a coragem necessária, com intuito de enfrentar a situação. Quando finalmente a encontrei, marchei em direção ao prédio.
         
Fui recepcionado pela agitação de policiais que passavam de lá para cá e familiares aflitos que esperavam na recepção.
         
Dirigi-me à balconista e perguntei:
         
- Boa tarde. Tudo bem?
         
- Tudo. E, você?
         
- Tentando ir bem, pra ser sincero.
         
- O que deseja?
         
- Gostaria de saber se Isabela Rodrigues Guimarães está detida neste local, por gentileza.
         
- Vou verificar.
         
A moça olhou no computador.
         
- Bem. Ela está aqui mesmo.
         
- Por que minha mãe foi presa?
         
- Vou encaminhá-lo ao delegado Parreira. Qual é o seu nome?
         
- Diogo.
         
- Aguarde um pouco, por gentileza.
         
- Obrigado.
         
- De nada.
         
Dentre instantes, um oficial me levou à sala do delegado.
         
O Delegado Parreira me recepcionou com um aperto de mão.
         
- Senhor Diogo, então você é filho de Isabela.
         
- Sim. Qual foi o motivo da prisão?
         
- Denunciação Caluniosa.
         
- Do que?
         
Ouvi a porta se aberta e uma voz feminina responder:
         
- Por incriminar uma mulher inocente, pegando uma de suas joias e forjando um roubo que nunca existiu.
         
Direcionei-me para onde vinha essa voz, lembrando-me de um passado grotesco, por causa do que eu acabara de escutar, o incidente com a filha da emprega. A bela mulher me encarava com olhos frios, cheios de uma raiva intensa e um desejo de vingança implacável. Não podia ser! Era mentira! Uma pegadinha!
         
- Isadora! – falei surpreso.
         
- Diogo, quanto tempo – saudou num tom frio.
         
Aproximei-me dela. Ambos ficamos um de frente ao outro, olho a olho. Sensações mistas jorravam como cachoeira. Meu primeiro e grande amor estava ali, encarando-me impassível. Parecia uma ilusão reencontrá-la. Achei que a tinha perdido para sempre naquela época. Mas não importava mais, muitos anos havia se passado, e o meu amor que nutri por Isadora não existia mais.
         
- Sei que sou bonita. Ainda mais para um homem tão canalha como você. Pode parar de me admirar – disse com deboche.
         
- Não é admiração, é surpresa. Nunca imaginei que a veria novamente.
         
- Nem eu. Na verdade, não queria.
         
- Mentira. Você fez questão de esfregar a sua vitória na minha cara.
         
- Cabe eu julgar a verdade.
         
Isadora andou, ficando ao lado do delegado.
         
- Finalmente, a sua mãe vai pagar pelo crime que cometeu. Esperei muitos anos, louca para dar o bote.
         
- E conseguiu – constatei. – Sua mãe nunca faria algo desse tipo. Sempre acreditei na inocência dela.
         
- Ela sofreu na cadeia, humilhada – continuou o discurso ignorando o que eu declarei -, cada dia que passou atrás das grades, a vida dela foi se esvaindo, desistindo de viver. Ninguém iria acreditar nela, ninguém! Ela morreu injustiçada, sem ter a chance de provar a inocência! Mas, hoje, eu provei a verdade! – disse vitoriosa.
         
- Sinto muito. Eu não queria que a minha mãe tivesse feito isso. Ela me confessou no mesmo dia o seu feito, feliz por ter nos separado.
         
- Ouviu, delegado? Mais uma prova do crime!
         
Isadora não era mais a mesma garota que conheci, doce, delicada e de uma bondade enorme. Esta Isadora de hoje era uma mulher fria, regozijando de sua vingança. Havia ódio em cada palavra proferida e, eu, não estava acreditando nessa reviravolta.
         
- Foi por isso que meu pai passou mal.
         
- Não me importa. Isabela está presa – ela riu quando proferiu essa frase.
         
- Como conseguiu provas para incriminar minha mãe?
         
- Usei um gravador.
         
- Que eu saiba isso não serve como prova.
         
- Nesse caso, senhor Diogo – disse o delegado – se usado para comprovar a inocência de uma pessoa é valido na justiça.
         
- Viu, Diogo? Eu venci! – Ela exultava, feliz.
         
- Posso chamar um advogado e pedir um habeas corpus para tirá-la da cadeia e responder o processo em liberdade. Ela é ré primária. Eu tenho dinheiro suficiente para isso.
         
- Você não ousaria...
         
- Infelizmente, ele pode, Isadora – o delegado comentou com pesar. – Tudo vai depender de como o juiz vai avaliar o caso.
         
Do modo que o delegado falava com Isadora, pude perceber que eles eram amigos.
         
- Não acredito que você foi inocente nesse aspecto? – Foi a minha vez de debochar. Isadora merecia que agisse desse modo. – A vingança cegou seu juízo?
         
- Filho da...
         
- Mas não irei fazê-lo – cortei o xingamento antes que fosse proferido.
         
- Sério? – Isadora perguntou surpresa.
         
Notei que a desarmei quando disse isso.
         
- Ela não merece. Delegado, gostaria de conversar com a minha mãe.
         
- Sim. Falarei com um dos policiais para providenciar isso.
         
- Obrigado.
         
Fixei o olhar em Isadora.
         
- Escute. Você pode ter alcançado êxito nisso tudo. Não tiro a sua razão. Mas a que preço? Vejo uma soberba, arrogância, ódio e uma amargura profunda. No final, ficamos bem parecidos um com o outro, mas por motivos diferentes. No fim, vai perceber que terá apenas um vazio profundo e imensurável dentro de si.
         
Abri a porta, não suportava mais estar naquele lugar.
 
                                  ***
 
Aguardei na sala de interrogatório, agoniado. Encarar Isabela não era uma tarefa fácil. Hoje, o acerto de contas do meu passado seria finalizado. Eu enterraria o velho Diogo para sempre.
         
A poderosa Senhora Guimarães surgiu. Não, não era mais poderosa, mas decaída. As algemas brilhavam nos seus pulsos como um adorno ou as joias preciosas que ela adorava exibi-las para qualquer um, declarando a sua derrocada.
          
Depois de observá-la, sendo trazida por um policial, nada mais me surpreendia, ainda mais que passei por muitas agitações no mesmo dia. Ela não vinha com aquela crina de altivez que sempre levava consigo, no lugar, havia um sofrimento e um abatimento muito grande. Minha mãe sentou na cadeira, exibindo o seu semblante triste para mim. Senti pena. Não era fácil estar presa.
         
Ficamos quietos por alguns minutos. Um silêncio reinava em torno daquelas quatro paredes. Depois, ela iniciou a conversa.
         
- Como está o seu pai? – perguntou. – Ele estava passando mal quando fui embora.
         
- No hospital.
         
Isabela arregalou os olhos espantada.
         
- O que ele teve? – As lágrimas desabavam enquanto falava.
         
- Princípio de infarto.
         
- Foi minha culpa. Pode jogar na minha cara. Eu deixo.
         
- Não, não quero. Essas algemas em seus pulsos já fazem todo o trabalho.
         
- Não foi só isso que causou essa tragédia.
         
- Me explique. Ele foi muito confuso ao tentar me narrar os eventos.
         
- Como você não quis assumir a TecnoFuture, tivemos que usar um plano B. Gustavo, um dos acionistas, iria assumir o cargo enquanto José Roberto se tratava. Entretanto, ao assinar o contrato para que ele assumisse a presidência, descobrimos algo terrível.
         
Ela parou de falar, chorando. Dei tempo, não estava com pressa. Então voltou a falar:
         
- Esse contrato passava todos os nossos bens para ele. Estamos falidos, sem nada. Nem um grana no bolso.
         
O destino queria testar minha sanidade, não era possível! Parecia uma montanha-russa com altos e baixos.  Meus pais estavam pobres. Entendi a pressão alta do meu pai e entendi principalmente a reação de tristeza da minha mãe: a falta do dinheiro. Aquilo me enfureceu. Ela se importava mais com o fortuna do que com a família. Aquela tristeza não era culpa de estar presa, mas fracasso da perda.
         
- Como pode ser tão gananciosa? – gritei tão alto que reverberou através do recinto. O policial abriu a porta querendo verificar se estava tudo bem, fiz um meneio sinalizando que sim. Respirei fundo e continuei: - Você sempre amou o dinheiro! Suas lágrimas escorrem cifrões!
         
Isabela estava impassível.
         
- Já que estou aqui, nesse momento bastante “agradável", o que me custa ser sincera? Sim. Eu amo o dinheiro. Amo tudo o que ele pode proporcionar, principalmente um advogado com o seu dinheiro para me tirar daqui – disse fria. – Está satisfeito, filho? – Então ela explodiu de raiva, desmanchando toda a impassibilidade contida. – Isso é culpa sua, Diogo! Se tivesse aceitado assumir os negócios da família, nada disso estaria acontecendo! Você nunca foi apto como foi seu irmão Ezequiel!
         
Ao ouvir o nome Ezequiel como comparativo, não consegui esconder toda a raiva que guardei durante anos. Jorrei tudo de uma vez só.
         
- A culpa, na verdade, é sua! Se não tivesse me tratado como um réu, fazendo-me ser igual a ele, não estaríamos numa delegacia!
         
- Errado! Você tirou a vida do meu filho! – berrou possessa.
         
- Cala a boca! – bradei cheio de autoridade que nunca demonstrei antes, que deixou a minha mãe desconcertada e muda. – Eu não matei o meu irmão Ezequiel! Foi um acidente!
         
A ferida que, não estava cicatrizada, despejou o pus podre acumulado de anos de mágoa. Sempre carreguei esse fardo, a acusação de ter matado meu maninho; era assim que eu dizia quando criança, meu maninho.
         
- Como pôde ser tão baixa ao ponto de acusar uma criança de três anos de uma morte que foi um acidente? Durante anos, carreguei esta maldição! Paguei por seus caprichos ordinários e desgraçados, apenas para substituir o filho preferido! Bateu, gritou, desprezou, destruiu e esmiuçou por arrogância! Sofri tanto. Não sabe o quanto é doloroso não receber amor, mas ódio no lugar!
         
Um urro de dor escapou dos meus lábios. O choro vinha a borbotões, incessante, ardente e insuportável.
         
- Você me manipulou! Fez-me sentir culpado! Quis que eu vivesse uma vida que não era minha! Desprezou seu filho, tudo por causa do maldito dinheiro! Sabe quantas noites eu chorei em silêncio no meu quarto, sofrendo porque eu não conseguia alcançar as suas expectativas? Sabe quantas vezes derramei as minhas lágrimas esperando um carinho seu? Você nunca me amou! Nunca! Acabei me tornando uma pessoa grotesca também por causa de suas maldades!
         
Eu gritava de fúria, despejando tudo o que estava preso dentro de mim. Não dava mais para guardar aquilo.
         
- Meu irmão Ezequiel era o filho perfeito que daria muito dinheiro para o seu bolso miserável! Ele era a sua conta bancária! Aposto que se ele e meu pai morressem, você ficaria exultante!
         
- Não fale uma besteira dessas! – ela bradou. – Sempre amei o seu pai e o seu irmão, sempre!
         
- Disse a completa verdade, você só ama os dois! Não a mim! Sua ganância te levou a parar aqui, na polícia! Seu egoísmo acabou com o meu psicológico! A partir de hoje, não viverei mais na sombra do meu irmão!
         
O policial abriu a porta por causa da gritaria, vendo-me chorar.
         
- Acho melhor terminarem essa conversa. O senhor não está bem e a senhora também não – o policial falou.
         
- Tem razão. Acabou de uma vez – disse me recompondo e enxugando as lágrimas com as costas da mão.
         
Olhei Isabela com um olhar penetrante e cheio de desprezo.
         
- Não pagarei advogado nenhum. Você não merece.
         
- Maldito! – bradou. – Maldito! Te odeio, Diogo! Te odeio! Nunca deveria ter botado você neste mundo!
         
- E eu nunca teria escolhido você como mãe. Louca, desvairada, infeliz e uma desgraçada! Qualquer filho que nascesse de seu ventre teria vergonha
de existir!
         
Levantei-me da cadeira, largando-a sozinha, não virei para trás.
         
Ao entrar no carro, chorei mais ainda. Eu tinha me libertado da acusação de ter matado Ezequiel.

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