Capítulo 5

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                               Júlia

O hospital estava agitado naquele dia. Médicos passavam de lá para cá, absortos em suas funções para cuidar das vidas que entravam e saíam daquele lugar. As pessoas estavam sentadas nas cadeiras da sala de espera, algumas quietas, outras conversavam e outras mexiam no celular enquanto uma parcela entretinha os olhos na televisão pendurada na parede, tentando ouvir algo, naquele volume típico, comum nos hospitais  públicos, baixo, quase sendo impossível de entender. Mas havia alguém que agia completamente diferente, eu, que chorava silenciosamente, encostada com a minha cabeça contra a parede, desesperada por achar que perderia a própria mãe aos 15 anos de idade.

Uma dor consumia o meu coração, sentindo-me culpada por não tê-la ajudado naquele momento tão crítico, apenas vendo o papai bater nela até  ficar inconsciente. Quando ele terminou de fazer seu servicinho sujo, seus olhos me alcançaram, exibindo uma loucura e um ódio terrível. Aquilo foi o suficiente para eu correr em direção ao meu quarto e fechar a porta entre lágrimas.

Ainda ouvi os passos dele sobre a casa enquanto um medo ardia tão furiosamente que fazia o peito doer e sem ar. De repente, tudo ficou em silêncio.
         
Não tive coragem de abrir a porta. A sensação era que eu seria a próxima vítima daquele homem horrendo, mas, ao mesmo tempo, uma urgência tomava conta para ajudar a minha mãe. Essa indecisão aumentou mais ainda, desencadeando as lágrimas que caíam sem trégua mais uma vez.
         
Quantas vezes eu já tinha presenciado cenas de agressão? Não havia como contar.
         
Levantei-me lentamente, tentando ter a coragem de destrancar a porta e socorrê-la, contudo, o medo criava impotência, causando tremedeira nas pernas, tensa ao deparar-me com a imagem do demônio que agredira a mulher que tanto me amava. Respirei profundamente, criando a força necessária para encarar a catástrofe. Abri a porta bem devagar, olhando pela fresta, averiguando se havia perigo. A casa soava silenciosa como um túmulo. Era agora. Caminhei até a sala cautelosamente, vendo mamãe estirada no chão com círculos roxos envolta dos olhos e a boca inchada e com sangue. O cretino fugira.
         
Liguei para a ambulância e, logo em seguida, para a polícia, denunciando aquela situação, fazendo jus a Lei da Maria da Penha.
         
O médico que cuidava do caso dissera que eu poderia ficar ao lado dela, fazer companhia. Ela tinha fraturado uma costela além dos machucados do rosto. O pior machucado não era o físico, mas o da alma, o emocional abalado.

Fora um longo processo de restabilização.

Essas lembranças haviam retornado desde o dia que evitei que Roberto agredisse minha mãe novamente. Ainda os acontecimentos daquela época eram tão fortes que nem parecia que seis anos havia se passado, continuando ainda mais vívido do que nunca.
         
Fiquei relutante em acampar. Não queria deixá-la sozinha, tinha medo que aquele ser asqueroso voltasse e acabasse com ela de uma vez. Porém, mamãe dissera para que não me preocupasse e fosse me divertir que tudo ficaria bem. Tínhamos que seguir em frente, sem medo.
         
- Ei, amiga. Planeta Terra chamando – disse Gabrielle.
         
- O que foi? – perguntando ao sair do meu devaneio.
         
- Você está tão imersa em seus pensamentos que achei que ia sumir desse ônibus. – Ela brincou.
         
- Desculpe. Eu estava pensando na minha mãe.
         
- Não precisa pedir desculpas. Se tivesse dito para cancelar, eu cancelaria nossa programação.
         
- Não, imagina.
         
- Está ansiosa para conhecer Paranapiacaba?
         
- Mais ou menos.
         
- Não acredito. Que ânimo é esse? Será o nosso primeiro momento juntas, fora da faculdade e do estágio. Eu até trouxe a Coca-Cola pra te deixar feliz – falou me animando.
         
- Tudo bem, me convenceu – disse sorrindo. – Tô sendo um pouco estraga-prazeres.
         
- Seu pai que é estraga-prazeres.
         
Fiquei um pouco triste.
         
- Falei algo que te chateou? – Gabrielle perguntou preocupada.
         
- Não. É que lembrar dele dói tanto.
         
- Vamos mudar de assunto. – Ela me abraçou. – Se não traz azar para os nossos projetos.
         
- Verdade. Ah, eu andei fazendo uma pesquisa sobre a cidade.
         
- Sério? O que achou de interessante?
         
- Paranapiacaba foi fundada por uma companhia inglesa chamada São Paulo Railway, que operava uma estrada de ferro para transportar cargas e pessoas do interior Paulista em direção a cidade de Santos.
         
- Nossa, que interessante! Eu deveria ter pesquisado mais sobre a cidade. Só fiquei preocupada com a parte da diversão. Por isso que você é a nerd da turma.
         
- Não sou nada. Só me esforço nos estudos.
         
- Tá me chamando de relaxada? – cutucou com o seu ombro no meu, brincando.
         
- Não, claro que não – respondi sendo irônica na brincadeira.
         
Já fazia algum tempo que estávamos dentro do ônibus de viagem indo em direção a Paranapiacaba e o dia não poderia estar mais perfeito como hoje, um sol forte e bonito, deixando a estrada viva.
         
Nós duas ficamos algum tempo quietas, apenas escutando o som da estrada que permeava o ambiente. Passei algum tempo olhando através da janela, vendo a rodovia com a sua paisagem sem prédios, só a natureza - embora houvesse o asfalto para lembrar do dedinho humano - fora isso, sentia-me feliz em observar ao redor.
         
Finalmente, havíamos chegado ao nosso destino. Descemos do veículo e fomos na direção do motorista que retirava a nossa bagagem, quer dizer,  trouxemos tanta coisa que parecia que acamparíamos durante meses. Depois, agradecemos o motorista que voltou para o seu posto e partiu.
         
- Júlia, agora precisamos perguntar aonde fica o Simplão de Tudo.
         
- Tem um bar aqui do lado, vamos lá.
         
Chegamos até o bar. O homem que atendia o balcão, segurava um copo americano na mão e com um pano de prato exugava, coordenando os pedidos e, logo ao ver-nos, iniciou seu processo de atendimento perguntando se queríamos alguma coisa. Respondemos que gostaríamos de saber aonde ficava o tal lugar. Ele tinha sido muito solícito e dissera tudo, explicando detadalhamente a rota.
         
O Simplão de Tudo ficava dentro de uma reserva, uma pequena casa no meio de uma natureza exuberante. Confesso que não aproveitei aquela cena maravilhosa, pois estava suada e cansada de andar com tanta coisa. A nossa ansiedade era tanta que nem pensamos em algum meio de locomoção e não fora tão ruim dar uma caminhada, respirar um pouco de ar puro e recuperar os pulmões daquela fumaceira da capital de São Paulo.
         
A moça responsável pelo Simplão, saiu da casa. Uma loira alta, bonita e vestia roupas de corrida, usava uma viseira de cor preta na cabeça e destituída completamente de maquiagem.
         
- Olá. Boa tarde, meninas – disse. – Sejam muito bem-vindas.
         
- Obrigada. – Eu e a Gabrielle respondemos em uníssono.
         
- Eu sou Samara, muito prazer.
         
- Gabrielle – cumprimentou.
         
- Júlia – dei um aperto de mão.
         
- Fiquem à vontade. Escolham um lugar maravilhoso para armarem a barraca. Mas com cuidado. Evitem solos irregulares. Seria desconfortável dormir sobre um buraco ou em um lugar cheio de pedrinhas, faria a noite para dormir uma experiência desagradável. Montem a entrada da barraca contra as correntes de vento, não passarão tanto frio. Não acampem em lugares de risco como embaixo de árvores. Entenderam?
         
- Entendi – disse.
         
- Com todas as letras – Gabrielle falou.
         
- Muito bem. Bom carnaval, meninas. Depois haverá informações das atividades daqui.
         
Ela voltou para dentro da casa.
         
O lugar era imenso, deixando-nos com dúvida para quais locais específicos poderíamos começar os preparativos. Até que decidimos. Haviam cinco barracas perto de um espaço aberto longe das árvores e grande,  sendo uma boa maneira para ter interação com as outras pessoas que estavam ali.
         
Eu pensava que existia muita complexidade ao montar uma barraca, afinal nunca tive vontade de acampar. Gabrielle me ajudara, mostrando que não era uma tarefa impossível.
         
Ficamos olhando por alguns instantes o nosso trabalho, satisfeitas. Tudo estava organizado, os colchonetes com os lençóis dobrados em cima, as lanternas cada uma em um canto oposto e alguns livros. A caixa térmica com a nossa comida e bebida, assim como duas cadeirinhas dobráveis, enfeitavam o lado de fora.
         
- Não está aconchegante? – Gabrielle perguntou.
         
- Sim – respondi.
         
- O que acha de darmos uma caminhada por aí?
         
- Seria ótimo. Mas não vamos muito longe, porque podemos nos perder.
         
- Não se preocupe, vamos manter a lei e a ordem. – Ela brincou.
         
- Sua boba. – Eu disse rindo.
         
Andamos naquele lugar maravilhoso, desfrutando o melhor que a natureza poderia oferecer: um sol maravilhoso e um céu azul cheio de nuvens branquinhas adornando o dia.  Fomos até a cachoeira e a água cristalina refletia o meu reflexo, instigando-me a retirar os sapatos e sentar na pedra da margem e molhar os pés, sentindo a frescura da corrente me revitalizar de uma maneira maravilhosa. Gabrielle imitou-me, aproveitando o momento.
         
- Gabi, estou grata por proporcionar-me essa magnífica oportunidade de estar em contato com a natureza – falei.
         
- Que isso. Achei que era uma época perfeita para que fizéssemos isso. Faz quase um ano que estamos no estágio e três na universidade, merecíamos um descanso. Sei que não ganhamos muito dinheiro, mas é possível aproveitar.
         
- Ainda mais que eu sou a que mais economiza – provoquei para tirar onda.
         
- Ah, é? Pelo menos eu gasto meu dinheiro e não me arrependo de catar moedinhas por aí. – Ela revidou.
         
Então nós rimos. Uma alegria tomou conta do meu ser, fazendo-me livre pela primeira vez, sem amarras e preocupações. Eu faria daquele feriado prolongado um deleite.
         
Voltamos para a nossa barraca quando Gabrielle percebeu algo que a deixou empolgada.
         
- Amiga olha quem estão lá. – Sua voz quase soava como um grito histérico.
         
Dei uma olhada melhor, percebendo que o ator Castro Guedes estava montando a sua barraca enquanto conversava e dava risada com um amigo.
         
- Não é possível! É o autor Castro Guedes! – exclamei espantada.
         
- Mas você não viu a melhor parte. – Ela quase estava correndo em direção a eles.
         
- Que melhor parte? – perguntei confusa tentando contê-la.
         
- Diogo Guimarães. Lembra daquele modelo que te mostrei no Instagram?
         
- Sim, lembro.

- É ele. Gente, ao vivo e a cores é mais gato ainda. – Ela abanava a mãos.
         
- Foco, Gabi. Esses homens estão num universo diferente da gente.
         
- Ah, mas irei pedir uma selfie com toda a certeza.
         
Ela saiu em disparada me levando junto até ao encontro dos dois contra a minha vontade.

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