Capítulo 16

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                               Diogo

A perna engessada dava uma enorme frustração, porque eu teria que adiar compromissos relacionados a minha profissão e até um próximo desfile, caso eu fosse solicitado, deixando-me de molho por alguns dias. Por outro lado, eu não poderia reclamar, fora apenas uma perna, poderia ter sido outra parte do corpo, comprometendo-me para sempre.
         
Só de pensar que um dia antes, aquela mata horrorosa me cercava com seus borrachudos no meu tórax definido, era horrível. O pior, era ficar acordando e dormindo toda a hora e sentindo a dor na perna como um lembrete maldito. Se fosse só isso, ainda, talvez, não tivesse sido tão ruim. Mas estar rodeado, também, por minhas lembranças num momento de tensão, não era nada bom. Naquela noite, perdido ao lado de Júlia, certos acontecimentos que havia ocorrido na minha vida insistiam em voltar para me assombrar, acabando de estragar tudo.
         
Eu tinha agido por precipitação, ocasionando uma desgraça e pondo em risco a vida de outra pessoa. Minha intensão era apenas conquistar Júlia e transar com ela, vencendo a aposta. Entretanto, isso tornara-se insignificante mediante a todo esse sofrimento.
         
Infelizmente, tive que confessar para mim mesmo essa derrota. Jamais poderia perfurar o coração dela, um erro que estava mais do que claro agora. Não que eu fosse mudar e não encontrar uma outra mulher para sair e me divertir muito, só que a garota que me ignorara desde o primeiro dia do feriadão, provara ser uma adversária digna. Isso me deixava fora do sério, como poderia existir alguém tão imune aos meus encantos?! Eu precisava me conformar.
         
A única coisa de importante, naquele instante, era sair daquela mata, já não aguentava mais ficar dessa forma, agonizando no chão. Queria que viesse alguém logo para nos resgatar. Parecia que a noite nunca acabava, tornando num eterno giro sem fim de mesmice.
         
Notei, no meu desconforto, que Júlia havia se encostado contra o tronco de uma árvore, dormindo, mas ao mesmo tempo, os ombros dela estavam numa posição arqueada mostrando tensão. Senti pena dela, surgindo uma leve culpa dentro de mim. Essa culpa foi substituída pela dor na perna e, novamente, perdi a consciência, sendo assombrado pelo meu passado.
         
A coisa mais difícil, em todos esses anos, fora esquecer as coisas de ruim que aconteceram na minha vida. Consegui enterrar as más recordações, entretanto, elas resolveram sair de debaixo da terra como zumbis famintos, uma delas, não era exatamente um má recordação, pois tinha sido o dia que eu tinha saído do colégio interno.
         
Tinha sido uma surpresa para a minha mãe ver-me diferente depois de dois anos, mais frio e calculista, sentindo-se intimidada com a minha presença, fazendo-me vitorioso a mostrar toda a frieza produzida durante esse tempo, sozinho, sem ninguém e amargurado por perder o grande amor da minha vida.
         
Então a imagem de Isadora e Júlia surgiram,  de repente, fundindo-se numa só, tornando numa mesma mulher, sorrindo, tocando nas minhas mãos e desferindo um beijo. Lágrimas caíam dos meus olhos, molhando as minhas faces frias, lacerando-me por dentro como uma faca afiadíssima. Logo depois, Júlia e Isadora separaram-se, voltando cada uma ser como era antes. Agora, só havia a doce Júlia na minha frente, tocando-me no rosto com as suas mãos macias e quentes. O sorriso dela era a coisa mais linda do mundo, luminescente, agradável e angelical, afagando o meu coração. De repente, Júlia e Isadora ficaram frente a frente. As duas me olharam cheias de ódio e foram embora. Eu gritei, implorando para que elas ficassem e me protegessem, porque eu não queria ficar sozinho. Quando elas sumiram, uma risada maligna ecoou do nada, percebi cordas prendendo-se entre meus pulsos, tornozelos e pescoço. Olhei para cima, minha mãe ria malignamente, conduzindo-me como uma marionete, obrigando-me a fazer o que ela queria.
         
- Anda, garoto! Faça o que estou pedindo! Aja como o seu irmão Ezequiel! – ela vociferava loucamente.
         
Quando ela percebeu que eu não conseguia fazer nada igual a ele, abriu uma gigantesca garrafa de álcool, jogando no meu corpo que agora era feito de madeira e acendendo um isqueiro e fazendo-me pegar fogo.
         
Enquanto as chamas se banqueteavam, fui virando cinzas enquanto aquela maldita mulher ria e ria, sem parar.
         
Acordei sobressaltado e com a respiração entrecortada. Uma mão gentil pousou no meu ombro, percebi que era um bombeiro. Sem conseguir me conter, eu chorei sem parar, não de alívio por ser resgatado, mas pelas lembranças e o pesadelo que desapareceram,  despertando, infelizmente, sentimentos tão frágeis dentro de mim. A casca do homem indomável, dominador e irascível fora quebrada, revelando o mesmo garoto de oito anos que estava preso dentro de um casulo com medo de se machucar.
         
Fui colocado numa maca e levado ao hospital. Chegando lá, levaram-me direto à ala de Raio X para saberem melhor o estado da minha perna quebrada, além de outras possíveis fraturas que pudessem ter ocorrido. Graças a Deus, era apenas a perna.
         
Ao ser posto em um quarto hospitalar, Castro entrou para ver como eu estava.
         
- Como está se sentindo? – perguntou ele.
         
- Melhor agora.
         
- Que bom.
         
- Gostaria de dizer algo.
         
- Fale.
         
- Eu desisto da aposta.
         
- Sério? – Vi surpresa no seu olhar.
         
- Sim. Você ganhou. Quando der, eu darei o seu dinheiro.
         
- Não precisa.
         
- Por que? – fiquei confuso.
         
- Eu desisto da aposta também.
         
- Está falando sério?
         
- Estou. Olha onde isso nos meteu.
         
- Você tem razão.
         
- E, por que mudou de ideia em não continuar com a aposta?
         
- Percebi que Júlia é muita areia para o meu caminhãozinho – respondi sorrindo.
         
Castro gargalhou.
         
- Essa é boa! Você dizer isso! O mundo acabou.
         
- Também não precisa exagerar – fiz uma careta de reprovação.
         
- Eu sei. Mas conhecendo a sua personalidade é difícil de acreditar.
         
- Minha personalidade incomoda tanto?
         
Ele ficou surpreso ao ser pego desprevenido por esta pergunta.
         
- Quer a minha opinião sincera?
         
- Pode.
         
- Eu repito o que eu disse anteriormente. Você é arrogante, orgulhoso, metido, soberbo, pretencioso, egoísta e narcisista.
         
- Acho que já ouvi tudo isso.
         
- Falo para o seu bem. Eu também sou bonito e famoso. Quando estou na rua, as mulheres olham para mim suspirando e devorando-me com os olhos, contudo, não me gabo. Esse é o preço dos holofotes. Nós dois somos um padrão que foi imposto na gente. Duvido que se você fosse feio, estaria desfilando.
         
- Você tem razão.
         
Olhei para os olhos de Castro que transmitiam sinceridade.
         
- Eu gosto do que faço. Quando estou na passarela sinto-me completo, parece que tudo se encaixa e tem uma razão.
         
- Eu entendo você. É a mesma coisa quando estou atuando. Isso é amor pela profissão.
         
- Exato.
         
- Pensa no que te falei. Seja mais humilde.
         
- Vou avaliar com carinho. E, obrigado por essa amizade. Não faz tanto tempo que nos conhecemos, mas parece que temos uma ligação forte há muito tempo.
         
- Eu também.
         
Castro pôs a mão dele no meu ombro.
         
- Agora descansa. O médico disse que amanhã você terá alta.
         
- Que bom.
         
- Amanhã, a gente vai embora então.
         
- Pode deixar.
         
Castrou foi embora.
         
No dia seguinte, recebi alta, ficando aliviado.
         
Meu amigo retornou dizendo que ia dar carona para Júlia, pois ela sairia do mesmo dia do que eu.
         
Peguei as minhas muletas, ajeitando-me nelas e saindo do quarto. Na entrada do hospital, meu olhar encontrou o da Júlia e, inexplicavelmente, uma vergonha tomou conta, obrigando-me a abaixar os olhos para não ficar encarando-a. Diogo Guimarães, onde estava aquela marra toda de macho? Essa pergunta passava na minha cabeça sem nenhuma explicação plausível.
         
Dirigimo-nos para o carro. Castro ajudou-me a entrar enquanto as garotas tomavam o assentos. Depois, Castro acomodou-se também, dando partida no motor.
         
Durante o retorno para o Simplão, nenhum de nós disse qualquer palavra, nem o rádio foi ligado.
         
Quando chegamos de volta ao local, o veículo foi estacionado e saímos de lá de dentro.
         
- Muito obrigada, Castro – Júlia agradeceu.
         
- Imagina – falou.
         
- Fui muito gentil da sua parte – Gabrielle elogiou.
         
Gabrielle virou-se para a sua amiga e disse:
         
- Agora, vamos empacotar as nossas coisas para ir embora.
         
- Vocês vão embora? – Castro perguntou surpreso.
         
- Sim. Achamos melhor voltarmos para casa, tendo em vista, os últimos acontecimentos – acrescentou.
         
Arregalei os olhos surpreso. Eu nunca mais veria a Júlia. Melhor assim. Fingir que nada havia acontecido, cada um seguindo a sua vida. Mas, por que eu estava me sentindo estranho? A sensação de não vê-la outra vez assemelhava-se como estar de luto, uma tristeza tão amarga. Fiquei desconcertado com isso, acreditava que poderia ser frustração de não ter ganhado a aposta. Tinha que ser, não poderia ter várias explicações. Na verdade, bem lá no fundo, minha consciência zombava dizendo que era algo mais, alguma coisa que eu não compreendia e queria que ficasse no esquecimento.
         
- Castro – eu o chamei.
         
- Fala. O que foi? – perguntou.
         
- Gostaria que fizéssemos o mesmo que elas. Não tenho condições de curtir mais nada neste estado.
         
- Como queira.
         
- E gostaria que fizesse um favor também.
         
- Um favor? Qual?
         
- Desse uma carona para a Júlia e a Gabrielle até a casa delas, por gentileza.
         
Castro ficou espantado mediante aquelas palavras. Júlia e Gabrielle ficaram sem reação com a minha gentileza. Jamais imaginaram que eu poderia agir de um modo tão cortês. Era o mínimo depois de toda a confusão que ocasionei.
         
- Não precisa – ela disse ficando constrangida.
         
- Por favor, Júlia – pedi -, aceite.
         
Ela engoliu em seco, receosa diante desta oferta. Não queria nada em troca, apenas deixá-la livre de mim. Eu sabia muito bem quando se perdia a guerra e o momento certo de recuar.
         
- Está bem – ela concordou.
         
Logo em seguida, nos separamos, cada um voltando para arrumar as coisas.
         
Enquanto eu e Castro voltávamos para o nosso acampamento, meu amigo ator me elogiou:
         
- Estou orgulhoso. Foi muito educado da sua parte oferecer carona.
         
- Não se acostume com isso – brinquei. – Ainda sou o mesmo de sempre.
         
- Estou morrendo de medo – zombou.
         
Quando aproximamo-nos até as nossas barracas, começamos a organizar tudo para irmos embora. Castro que teve serviço redobrado, pois eu estava com a perna enfaixada, tendo um pouco de limitação para fazer as coisas, mesmo assim, ajudei no que pude, não queria sobrecarregá-lo.
         
Fomos em direção ao carro e guardamos a nossas coisas. Castro ajudou-me a entrar no veículo, fechando a porta atrás de si e indo buscar as garotas.
         
Fiquei olhando a entrada do Simplão e a natureza ao redor, analisando os acontecimentos dos últimos dias e a falta de uma resolução contundente para não anunciar o casamento com Milena. Não queria compromisso, mas se eu não cedesse aos caprichos do Sr. Alcântara, meu amado e docinho dinheirinho iria para as cucuias. Ainda havia a resposta que deveria de dar para assumir a TecnoFuture, entretanto, a minha resposta seria a mesma, um glorioso não. Infelizmente, nenhuma ideia útil surgia na minha mente, deixando-me à deriva sem saber quais medidas tomar.
         
Castro retornou segurando algumas coisas de Júlia e Gabrielle, auxiliando-as a porem seus pertences no porta-malas. Resolvi ficar olhando para a frente, sem dirigir qualquer olhar para elas, aguardando para irmos embora.
         
As duas entraram no automóvel e, também, Castro, dando a partida no motor. Então deixamos aquele lugar.
         
Na estrada, o silêncio foi uma constante ali dentro, todo mundo quieto sem dizer nenhuma palavra. Eu, sinceramente, não estava muito afim, porque não havia motivo para ter um diálogo.
         
- Meninas, vocês se importam de eu ligar o som? Tá muito quieto aqui, está me deixando agoniado – Castro perguntou.
         
Sabia que ele não iria resistir.
         
- À vontade – Júlia respondeu.
         
- Nada contra – Gabrielle falou.
         
- E, você, Diogo? – ele me perguntou.
         
- Tanto faz. – Eu dei os ombros.
         
Uma voz saiu do rádio:
         
Michael, eles não se importam com a gente!”
         
They don't care about us invadiu aquele âmbito poderosamente com os tambores do Olodum ressoando através do veículo como uma marcha do exército.
         
Gabrielle era a mais empolgada do grupo, batendo as duas mãos nas pernas para acompanhar o ritmo da música e cantando. Essa garota deveria investir em alguma coisa interessante, porque ela tinha um jeito único, engraçado e contagiante. Ela fazia o contraponto com a Júlia, duas pessoas completamente apostas que se davam muito bem.
         
Algumas horas passaram e São Paulo deu sinal de vida logo à frente, recepcionando-nos agitadamente de veículos ao redor, como também, os grandes prédios da capital Paulista. Aquela tranquila cidade do interior fora substituída pelo fluxo imperativo de um lugar completamente vivo e ativo. Como era bom estar de volta, na maior cidade da América Latina e do mundo.
         
Certo tempo mais tarde, Castro perguntou a Júlia o endereço dela. Inesperadamente, meu coração bateu fortemente e uma ansiedade incontrolável rugia dentro de mim, empolgado ao saber onde ela morava. Estranhei essa sensação, eu não tinha nada a ver com a vida dela, nem o endereço. Eu já tinha tomado liberdades demais, queria apenas que essa mulher nunca mais estivesse presente na minha vida.
         
A rua dela surgiu, mostrando um lugar simples e acolhedor. Júlia indicou o local exato aonde Castro deveria parar, desligando o motor. Ele desceu do carro e Júlia se despediu de Gabrielle, saiu e recebeu as coisas do Castro enquanto eu a observava. Olhei para trás vendo-a pela última vez e uma angústia tomou conta do meu peito. Lutei para ignorar isso, porque não havia razão para estar me sentindo assim.
         
Por último, Gabrielle foi deixada na casa dela, feliz por nós dois temos ciência de onde ela residia. Sorri ao ver aquela atitude, com tudo com tudo, ela gostava do meu trabalho. A missão de Castro e a minha de Uber havia acabado, agora era nós dois, sozinhos.
         
Entrei no apartamento, agradecendo aos céus por estar no meu amado doce lar. Deixei as coisas do acampamento na sala e voei para o quarto, indo tirar um bom cochilo.

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