Capítulo 3

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Suspirei, tentando me concentrar na Linha Reddo embaçada de chuva e neblina. Houve outro festival de buzinas e o carro da frente avançou três metros. Acelerei devagar, soltando o pé da embreagem barulhenta. Quando tive de frear (de novo!), bufei, irritado, e amaldiçoei a situação. 

Os três anos que passei em em Kirigakure mais pareciam três minutos. De volta ao interior de Hinokoku há dois meses, eu já tinha me desacostumado à agitação da cidade grande. Logo eu, que antes não perdia tempo nem nas escapadas para o xixi (meu recorde era correr até o banheiro, lavar as mãos e voltar para a minha mesa em menos de três minutos) e só via o azul do mar pela janela do escritório. 

Até a paisagem ao meu redor - a Baía de Sanby, o Aeroporto do Hikaru e o Templo Todoroki imponente, embora parcialmente encoberta pela profusão de nuvens baixas - parecia nova para mim. Eu não pertencia àquele lugar.

Ah, tudo bem. Como se um engarrafamento na Linha Reddo fosse meu pior problema agora…

Aproveitei o trânsito imóvel para trocar o CD. Não tinha deixado meus discos preferidos de indie e pop rock no porta-luvas, embora estivesse dirigindo a Van com frequência ultimamente. Tinha sido obrigado a vender meu C3 financiado (tão lindo! Tão novo! Tão diferente daquela lata velha!) E andava ajudando meu pai com as entregas da floricultura, o que não era lá uma grande ocupação, levando em conta as vendas cada dia mais fracas. Escolhi Melanie Martinez e girei o botão do CD Player antiquado, aumentando o som infestado de ruídos. Pelo menos a cabine tinha ar-condicionado, um alívio oportuno em se tratando de Kirigakure.

Eu não sou a vilã

Então não me trate mal se eu estiver triste, tudo bem?

Por favor, não fique bravo se eu não sorrir de volta, tudo bem?

É. Melanie vinha mesmo a calhar. Como um mantra feito especialmente para mim.

Acelerei a Van. Depois parei. Cruzei os braços. Esperei.

Eu estou fisicamente exausta

Cansada das minhas juntas fincando

Estou mascando chiclete para passar esse tempo de tristeza.

Acelerei de novo. Freei bruscamente. Dois minutos. Acelerei. Freei. Cantei Baby, can you meet me tonight in detention. Acelerei. Parei. Acelerei. Parei. Esfreguei os olhos. Acelerei. Parei. Deuses, que sede! Abri o vidro e gritei:

- Ei!  

Botei o braço para fora da janela, na garoa, e balancei a nota de dois contos. 

- Aqui! Ei você! Uma água, por favor! 

A pequena capa de chuva amarela ambulante se virou para mim, me revelando um menino de 12 anos, no máximo. Ele me olhou. 

- Foi mal - disse ele. - Tem água mais não. Vendi a última pro maluco ali na frente, ó. - O menino, que precisava de uma visita ao dentista urgente, apontou para o Audi prateado, na fila de carros ao lado da minha. 

- Um refri então? 

- Também acabou.

- Suco?

- Acabou. 

- Chá?

- Acabou.

Franzi a testa para o enorme isopor pendurado em seu ombro raquítico e falei: 

- Alguma bebida gelada?

- Acabou geral, tá entendendo? 

Bufo. E depois papai ainda diz que minhas desventuras atuais não se chamavam "Maré de Azar". Qual era o nome disso então?!

Os olhos do menino se fixaram na lataria da Van, nas letras pintadas de azul. 

- Carai, cuzão! - ele disse, curioso. - Que é que tá escrito aqui do lado?

- Floricultura Shiki.

- É o lugar que vende flor? 

- Sim.

Ele espichou o pescoço na direção de uma sirene que começará a esgoelar.

- Ih! A polícia! Fudeu! 

E meteu o pé.

Fechei a janela meio que pensando nos motivos ridículos que eu tinha para me sentir infeliz. Não que isso me confortasse. Por pior que seja a situação na China, nossos calos doem muito mais. 

O trânsito avançou um pouco, formando um estreito corredor que se abria e se fechava à medida que passavam as viaturas barulhentas. Pisei no acelerador. 

Mas, dessa vez, quando parei a Van, percebi que estava emparelhado com o Audi prateado. Estreitei os olhos para a cortina de chuva, curioso para ver quem era o "maluco", o sortudo, o dono da última garrafa de água: o motorista, sozinho no carro. Examinei seu perfil. 

Talvez seja ilusão de um cérebro sedento processando imagens torturantes, como as de um comercial de refrigerante em que o líquido escorre pelo pescoço suado do ator, que dá geladas imensas e finaliza com um saboroso "Ahhh". Mas posso jurar que vi um pouco de água vazando pela boca do sujeito. 

Fascinado, continuei observando o sr. Desperdício. Eu me lembrei do Bakugou, meu falecido pinscher, e da sua cara de imbecil olhando para a vitrina de frangos giratórios da padaria. Tentei relaxar minha expressão de cachorro faminto. 

Mas não foi a sede ou a raiva que senti do sr. Desperdício, nem mesmo a lembrança do Bakugou (que Kami o tenha) que me fez congelar no banco da van e agarrar o volante com mais força. 

O sr. Desperdício limpou a boca no antebraço e virou o rosto na minha direção. 

Mesmo ali atrás da garoa e do vidro embaçado, era impossível não sentir o magnetismo daquele rosto. Não era estóico ou com traços frios como o do primo Eiji. Ainda assim expressivo, com traços fortes, enfáticos, sei lá.

Era bonito, sem dúvida. O cabelo escuro curto, e as marcas na pele clara. Tinha um quê tão estranho de familiaridade que eu até me perguntei se o conhecia de algum lugar. Ele regulava em idade comigo. De onde seria? Da FM Logistic? Dos cursos da pós? Quem sabe se ele tirasse os óculos escuros…

Não, não. Eu devia estar enganado. 

Foi uma buzina que me tirou do transe. Depois outra. 

O sr. Desperdício buzinava e balançava o braço, sorrindo para mim. 

No instante em que percebi que eu ainda estava olhando, virei o rosto bem depressa e tentei me concentrar no trânsito engarrafado. 

Ah, por favor, por favor, por favor, que ele não esteja pensando que eu estava encarando, por favor, por favor! 

As buzinas continuaram. Com o coração acelerado, virei um pouco a cabeça, só um pouco, o suficiente para enxergar o Audi no canto do olho. O sr. Desperdício, com vidro do carona aberto, dizia coisas ininteligíveis e fazia sinal para que eu abaixasse o vidro da Van. 

Só para me irritar, mandou um beijinho.

Babaca, pensei. Eu conhecia aquele tipo. Idiota metido a besta que nunca perde uma conquista, uma isca fácil. 

Uma isca fácil. Era o que eu devia parecer ao olhos dele.

E justo quando eu realmente achava que meu sábado não poderia piorar, o sr. Desperdício abriu a porta do Audi e saltou para a chuva. 

Mas não tive tempo de saber em que direção ele ia. 

Por que foi nesse instante que o tiroteio começou.

O Azar É SeuOnde histórias criam vida. Descubra agora