Capítulo 25

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Eu não sei dizer por quantos minutos fiquei examinando o rosto dele, tentando desesperadamente processar  a verdade. Eu sentia algo crescendo interiormente, mas não conseguia dar nome àquela coisa recém-parida dentro de mim. Algo violento e contraditório. Algo que se avolumava à medida que eu ia me embriagando das lembranças que de repente se sucediam na minha mente, fora da ordem cronológica. 

Durante dez anos, eu havia saboreado as mesmas recordações, a conta-gotas. No escuro do quarto, na fila do mercado, no trânsito engarrafado, no café do escritório. 

Durante dez anos, tudo o que fiz foi me sentir um idiota por simplesmente não conseguir esquecer. E agora era obrigado a reviver as mesmas lembranças de maneira avassaladora, diante do personagem principal de todas elas, sem ter tido chance de me preparar para isso. 

Eu não estava preparado. 

Mas ele estava ali. O meu Tobi estava bem ali, atrás daquele rosto novo, daqueles olhos tão íntimos que me fitavam num silêncio apreensivo. 

Era o mesmo Tobi que havia me telefonado de seu Samsung, na madrugada do show da  Miley Cyrus, em que não pude ir porque os organizadores achavam que eu não tinha idade ainda. 

Ele disse “Escuta essa” e deixou o celular ligado para que eu, chorando baixinho, embolada nos cobertores, pudesse ouvir a Miley cantando a minha música favorita do Plastic Hearts:

I know that you're wrong for me

Gonna wish we never met on the day I leave

I brought you down to your knees

'Cause they say that misery loves company

It's not your fault I ruin everything

And it's not your fault I can't be what you need

Baby, angels like you can't fly down hell with me

O mesmo Tobi que, na noite do pijama em que perdi o sono, encontrei deitado no sofá da sala lendo As Vantagens de Ser Invisível sob a luz do abajur. Lembro que fiquei muito quieto e me arrastei para o sofá da frente quando, sem qualquer explicação, ele passou a ler o livro em voz alta... 

O mesmo Tobi que um dia se sentou no vão entre o tanque e a máquina de lavar, onde eu me escondi numa tarde de tempestade, e dividiu comigo um dos fones de seu celular tocando The Night We Met em modo repetição. Ele só relaxou quando voltei a respirar normalmente. Então se esparramou no espaço apertado, me provocando arrepios ao encostar um lado inteiro do corpo no meu... 

O mesmo Tobi, que no Distrito Uchiha, desembestou a correr ao lado do ônibus que me levava de volta a Konohagakure acenando e gritando sob a minha janela, até perder o fôlego e sumir de vista, cansado e apoiando as mãos no joelho... 

O mesmo Tobi que ia lá para casa estudar para as provas de percepção musical e fazia a alegria do Bakugou, chamando-o de “meu garoto” com um cafuné na cabeça do bichinho, que pulava feliz ao redor de suas pernas. 

Foi Tobi quem me deu o primeiro abraço quando Bakugou morreu atropelado em frente à floricultura. Quem me disse “deve haver uma razão”. 

Quem me contou dos mistérios de Stonehenge. 

Quem me ensinou a pescar; a assobiar usando os dedos; a andar de bicicleta, no campus da universidade, e depois me levou até o topo de uma elevação gramada e me surpreendeu com os braços na minha cintura, fazendo-me cair e rolar junto com ele ladeira abaixo. E no momento em que o sol derramava raios oblíquos, nós dois nos agachamos contra a luz e erguemos os braços, lançando sombras na grama verdinha. Seus dedos se emaranharam numa tentativa frustrada de reproduzir a mosca-varejeira, e eu comecei a rir. Porque era simples rir com ele. 

O Azar É SeuOnde histórias criam vida. Descubra agora