Capítulo 17

25 5 0
                                    

Quinze minutos mais tarde, entrei na floricultura pela porta diretamente ligada à escada que descia da nossa casa. Papai, por sua vez, seguiu pelo corredor, saindo para a rua. Do lado de dentro da floricultura, no escuro, fiquei esperando e observando as duas portas de aço da entrada principal serem erguidas pelos braços magros de papai. A luz do sol de repente clareou as prateleiras, deu vida às flores, fez cintilar a inscrição Floricultura Shiki em letras vermelhas nos vidros laterais da vitrine, que se repetia na porta interna, também de vidro. 

A floricultura, decorada em tons pastel, era bem equipada: vendíamos flores, cartões, quadrinhos de parede, bichos de pelúcia, livros de jardinagem e ornamentação, e coisas do tipo. 

Liguei a música ambiente e comecei a organizar o balcão. Deixei as prateleiras por último, enquanto papai passava atrás de mim, levando os vasos mais bonitos para a calçada, a fim de impressionar os transeuntes. Levou também um quadro negro de três pés onde escreveu as promoções da semana em giz branco. 

Todos os dias, o procedimento era exatamente o mesmo. E todos os dias, papai fazia isso com um enorme sorriso no rosto. 

— Dei! — A voz chegou primeiro. Eu me virei. — Que bom ver você, querido! 

Lá estava Kushina, e toda a simpatia que fazia dela uma vendedora hábil, cheia de pique. Tinha 40 anos? É. Quarenta, acho. De todo modo, não aparentava. Kushina mantinha a boa forma com caminhadas diárias na Avenida Tobirama Senju. O cabelo, impecavelmente bem cuidado, longo e vermelho sangue. Vestia jeans e blusa de manga comprida com estampas de cores sóbrias. Eu me senti mal com a minha “cara de balde” e forcei um sorrisinho, como prometido:

— Oi. — Eu a abracei. Ou melhor, ela me abraçou. — Como vai a sua mãe? 

— Está melhor, querido, obrigado. — Kushina guardou sua bolsa de lona atrás do balcão e vestiu o avental do uniforme. — Senti saudades da floricultura, 'tebane — Olhou para papai, que estava empoleirado no alto da escada de alumínio, dando batidinhas na lâmpada fluorescente para que parasse de piscar. — Bom dia, Minato-san. 

Qualquer pessoa que observasse Kushina e o modo como se movia ao redor de papai, o modo como falava com ele, perceberia ali uma paixão reprimida. Eu não sabia se ele sabia. Ou se correspondia. Ele nunca, absolutamente nunca, falava de mulheres comigo e jamais tinha assumido um relacionamento sério, embora eu soubesse, por terceiros, de duas ou três mulheres com quem ele tinha saído. Mas isso já fazia tempo.  

— Andei rabiscando uns desenhos —disse Kushina. — Só umas ideias para dar uma renovada na loja. Venha ver, Dei. 

Kushina abriu sua pasta preta e eu me debrucei no balcão para ver melhor. Ela costumava tirar fotos dos arranjos que criava e as enfiava dentro de sacos plásticos, junto com os esboços à mão, mesmo que nunca tivesse aproveitado o portfólio de maneira mais produtiva. 

— Estes três foram os últimos — disse ela, apontando com o dedo. 

— Lindos, Kushina. Parabéns. 

O dia arrastou-se monótono. Poucos clientes. Poucas entregas. Na hora do almoço, nós três nos revezamos sem que eu ficasse sozinho na loja. De tardinha, papai partiu de van para Kumogakure. 

Kushina ficou comigo, mas as únicas pessoas que entraram na floricultura foram meia dúzia de garotos suados, suplicando para que enchessem suas garrafinhas com água gelada. 

Do outro lado da rua, perto da escola municipal, havia uma imensa área gramada e plana, utilizada pela prefeitura para a realização de eventos, mas que, na maioria das vezes, servia de campo de futebol. Num domingo ensolarado, o lugar ficava abarrotado de gente, crianças na maioria. Só que ninguém ali parecia interessado nas flores de papai. 

— Se precisar de alguma coisa, me ligue. — Foi o que Kushina me disse, depois de me ajudar a recolher os vasos e o quadro negro da calçada, e de juntar suas coisas. Passou a bolsa no ombro. — Até amanhã. 

Apagou as luzes da frente da loja,  pendurou a plaquinha escrito "fechado" na maçaneta e encostou a porta de vidro ao passar por ela. 

Eu me sentia exausto. Minhas pernas e braços doíam muito; o efeito do Dorflex tinha passado havia horas. Mas resolvi não deixar o serviço para o dia seguinte. 

Peguei a vassoura e comecei a varrer atrás do balcão. Estava agachado, juntando o lixo para cima da pá quando ouvi um barulho e me levantei num salto,  arfando de susto e espalhando a sujeira. 

O Cara estava parado a três metros de mim. 

— Bem me quer — disse ele, arrancando a última pétala da margarida em sua mão e jogando-a para o alto. 

Fiquei olhando para ele, chocado. Não pela coincidência de ele estar segurando uma margarida que não tinha pétalas, apenas caule; uma margarida de verdade. 

Mas porque... É isso mesmo. O Cara estava ali. Na minha floricultura. Rodeado de flores coloridas. Não tinha sido uma vertigem. Ele realmente existia e Kami... Era mais lindo do que eu conseguia me lembrar. 

Usava All Star preto, calça jeans, blusa cinza estampada com os Guardiões da Galáxia. Duas sacolas de mercado penduradas no braço. Nas costas, o violão. 

Precisei me apoiar na vassoura para não cair e sei que minha cara não estava nada boa pelo modo como ele ergueu as sobrancelhas (uma delas com Band-Aid colado) e disse:

— Você está atrasado. E parece mais bravinho do que nunca. 

Então abriu o sorriso e tudo que fiz foi fechar a cara um pouco mais. Só que, claro, ele não fazia a menor ideia de que havia um balão gelado na minha  barriga crescendo a uma velocidade exponencial. 

Mesmo que aparentasse o contrário para quem visse de fora, eu sabia perfeitamente que essa coisa que eu sentia dentro de mim, essa coisa que ardia e se irradiava para todas as células do meu corpo, essa coisa tinha nome. 

Era alegria, combinada com generosas doses de desejo.

O Azar É SeuOnde histórias criam vida. Descubra agora