Capítulo 6

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- Eu não morri! - comemorei, embora aquele lugar certamente fosse o inferno. - Estou vivo! Obrigada, meu Deus! 

- Por que você está agradecendo?

- Como assim por quê? - Virei o rosto para o sr. Desperdício. - Nós estamos vivos! 

- Pensei que você quisesse morrer.

- Morrer? - Arregalei os olhos. - Eu não sou suicida.

- Não foi o que pareceu.

- Como não?  

- Com todas aquelas tentativas de sair de baixo da van esperneando daquele jeito. 

- Hã? 

- Vem cá, me diz uma coisa - Ele mexeu os ombros, o que era uma verdadeira proeza, considerando a largura deles, somada ao fato de estarem esmagados contra o pneu traseiro do van. Depois fez um esforço para mudar de posição, deitando de costas como eu. Com a diferença de que parecia tão alheio a todo aquele cenário de horror que dava a impressão de que a qualquer instante ia colocar os braços atrás da cabeça e começou a assobiar. - O que te aflige tanto a ponto de querer desistir da vida? Fiquei preocupado. 

- Preocupado? - Dá para acreditar? - Não sei se você percebeu, mas não estou sentado num divã.

- Só estou querendo entender. 

- Já falei que não sou suicida.

- Então por quê…?

- Tá legal - bufei, irritado. Que cara chato! Gostoso, mas chato. - Achei que tinha sido atingido na cabeça e estava só tentando aceitar a morte da melhor maneira possível. Ponderando as vantagens, aceitar melhor meu destino. 

- Essa é boa.

- Qual foi? 

- Se uma bala tivesse acertado a sua cabeça, não teria sobrado nada no seu cérebro para ponderar o lado bom de morrer. Aliás, qual é a vantagem de morrer? 

Esse é o tipo de momento em que eu queria ter o poder de mandar alguém pelos ares. Como ele ousa fazer piada com a minha morte e o meu desespero?! 

- Você não ficaria feliz com a sorte que eu tenho. 

- Hum. - Mordeu o lábio. - Complexo e emburrado. Irresistível.

- Obrigado pela parte que me toca - eu disse, usando a raiva para ignorar o balão no meu estômago pedindo para subir. Mudei de assunto. - O que aconteceu? 

- Você bateu a cabeça na lataria da van - explicou. - Teve uma ausência rápida, mas acho que foi mais pelo pânico. Está melhor? 

Outro estampido. 

- Santa Mãe, o que estamos pensando? - eu me desesperei, deixando o País das Maravilhas e começando a entrar em pânico outra vez. - Com esses rodeios e gracinhas? Essa conversa não faz o menor sentido!  Ainda estamos debaixo de um tiroteio. 

- Mas a frequência dos tiros diminuiu. - disse ele. - O engarrafamento se dispersou um pouco. Você consegue se levantar e entrar na van? Consegue aceitar numa boa uma tentativa de fuga?

Estremeci. 

- É a nossa chance. - Ele me incentivou. - Vamos dar o fora daqui, certo? 

Fiz que sim, na impossibilidade de dizer qualquer coisa. 

- Quando eu der o sinal, você entra na van, ok? - disse ele.

Apertei os olhos para não chorar e comecei a fazer exercícios de respiração. 

- Ei… - Ele pegou minha mão e a apertou de um jeito, digamos, carinhoso. - Vai ficar tudo bem, confie em mim.

Não sei por que, mas eu confiava.

- Está com medo? - ele quis saber.

- Não. - disse com tanta firmeza que eu cheguei a acreditar nas minhas palavras. - Só estou esperando o sinal.

Ele entendeu o recado. Com o corpo inclinado para a frente, correu até o Audi e abriu o porta malas. Eu me perguntei se a primeira pessoa do plural daquele "Vamos dar o fora daqui" tinha conotação literal. Com a minha sorte, é melhor desconfiar.

Mas tinha. Tinha sim. 

O sr. Desperdício jogou uma mala de rodinhas na traseira da minha van. Ele ia dar o fora dali comigo, no meu carro, o que não era uma conclusão tão brilhante, levando em conta que o Audi não tinha mais pára-brisa nem vidros laterais. Um gosto amargo subiu pela minha garganta quando me dei conta de que, se ele não tivesse me confundido com outra pessoa, se não tivesse descido do carro antes de o tiroteio começar…

- O que você está fazendo? - Ofeguei angustiado quando ele se esgueirou novamente pelo campo minado. Deu partida no Audi e emborcou o carro bem rente à mureta de concreto. Depois correu em direção ao porta malas que deixou aberto. Dessa vez, trouxe uma mochila, que jogou em cima da mala de rodinhas, e um estojo duro de violão com que teve mais cuidado. - Deixe essa bagagem pra lá! 

- É um Martin D-18! - disse ele como se o fato de eu saber que Martin D-18 é um violão caro para caralho, um dos melhores do mundo, estivesse subentendido. Eu saiba, é claro. Mas ele não sabia que eu sabia. Nem que eu era capaz de correr o mesmo risco por um Martin D-18! Mas era um Martin D-18! Isso me deixou quase emocionado. 

O sr. Desperdício abriu a porta do motorista da van e me ofereceu sua mão: 

- Vem! 

Respirei fundo e agarrei a mão dele.

O Azar É SeuOnde histórias criam vida. Descubra agora