Capítulo 10

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Era a bateria, é claro.

Mas isso não significa que a causa maior não estivesse relacionada à minha falta de sorte. Porque estava. Sem sombra de dúvidas. Ah por favor! O sr. Desperdício virou a chave na ignição meia hora depois de eu ter escapado de um tiroteio, que aconteceu no mesmo fucking dia em que acordei num colchão de merda cheirando a mofo, no quartinho dos fundos de uma casa nunca antes frequentada, a casa do meu tio-avô cabeludo (Eu já havia falado do cabelo do tio Jiraya? Não? Nem que o nome dele era Jiraya? Bem, estou falando agora.) O mesmo dia em que eu me arrependia amargamente de ter dado uns amassos no meu primo. 

O sr. Desperdício não concordou muito com isso. Com essa coisa de maré de azar. Nem depois de eu ter aberto o jogo para ele enquanto a gente chupava bala de menta, encostados na lateral da van, esperando a bateria recuperar o fôlego com a energia que puxava pelos cabos da chupeta. O frentista do posto de gasolina nos indicará o eletricista: 

- Primeira à direita, depois segunda à esquerda. É a última loja da rua sem saída. Na frente do muro pichado: "Tua estrela solitária te conduz". O nome dele é Satoru. 

Contei a ele que eu estava desempregado havia três meses. Ao sr. Desperdício, não ao Satoro. Que havia sido dispensado injustamente por justa causa e, por isso, saído da FM Logistic com uma mão na frente e outra atrás. E soltou um "vixe" quando confirmei que realmente - sim, real oficial! - eu estava morando com meu pai de novo, no apartamento em cima da floricultura, depois de anos curtindo minha independência e liberdade. Se é que trabalhar doze horas por dia, sete dias por semana, almoçar bolacha de pacote, engolir café atrás de café e assumir a brancura da pele sem medo de ser infeliz, numa cidade maravilhosa, pode ser considerado sinônimo de liberdade em alguma língua extraterrestre desconhecida. 

Só não contei do primo Eiji, por motivos óbvios, e nem das rosquinhas que eu comi no café da manhã. Sabendo que eu estava de dieta, ele poderia me achar fraco, duvidar da minha força de vontade e tudo mais. 

É. O caso é que eu falei até a minha boca ficar seca, e precisei virar dois shots de água. Se ele estava mesmo disposto a ceder os ouvidos às minhas lamentações, por que não aproveitar? Ele estava certo: sair do casulo era bom demais, um alívio desabafar. Eu me sentia bem melhor. 

-- Coincidência. - Foi o que o sr. Desperdício concluiu em relação às evidências gritantes da minha maré de azar, enquanto observamos Satoru mexer nos fios e encaixar a bateria recarregada no lugar. Satoru resmungou qualquer coisa sobre ferramentas trocadas. Gritou por um tal de Kira. Desviei os olhos do cofrinho que saltava de suas calças, para não vomitar. - Mas você podia se benzer, Bombinha. Só para garantir. 

Nessa hora, ele me arrancou uma risada irresistível e eu me engasguei com a água, que já havia esguichado pelo meu nariz. Ele estava virando especialista em me fazer rir. Eu nem me incomodava mais com o apelido de Bombinha. Não achava jocoso nem nada. Era fofo. E até excitante: ele tinha a voz mais linda do mundo, e eu, um corpo de 25 anos fervendo de testosterona carente. Só não mais excitante que o flerte que começou a rolar de repente. Ele, dirigido a van restaurada. Eu, tentando inútilmente não olhar muito mais ele. 

- Sou eclético - respondeu quando perguntei que tipo de música eletrônica gostava de ouvir. - Antigamente era viciado em rock, só ouvia rock, vestia rock, vivia pelo rock. Mas hoje ouço de tudo. Nem que seja só para criticar depois. 

- Somos dois, então. Só não suporto música eletrônica. 

- Eu não tenho nada contra - disse ele. - Mas ando ouvindo muito blues e blues-rock. Descobri umas bandas novas, tô curtindo. E tocou pop rock também. 

- Ouço mais os antigos - assinalei. - B. B. King, Jimi Hendrix, Eric Clapton. Mas gosto muito do YUNGBLUD também…

- Ele é bom. 

- É, ele é bom. - Sem mencionar que é um neném maravilhoso, pensei. Eu não me importaria nada em ser um namorado dele. - Já disse que estudei no conservatório? Toco piano, teclado e bateria. 

- E violão ultimamente.

- Como sabes?

- Os calos nos seus dedos. 

- Uau! - Minhas sobrancelhas subiram e desceram. 

- O que foi? - Ele desviou os olhos da pista e me olhou rapidamente. 

- Sei lá - sacudi a cabeça. 

- Pode falar, Bombinha. Já pulamos essa fase.

- Você sabe um monte de coisas sobre mim - confessei. - Parece vivente às vezes. 

- Não é culpa minha se dá para ver seus calos da lua.

Ergui as mãos e examinei meus dedos. As pontas pulavam bem vermelhas. 

- Na verdade - comecei a dizer -, estão mais para bolhas. 

- Nem preciso perguntar se as cordas do seu violão são de aço. 

- Sim, são.

- Viu? - disse ele. - Não é uma questão de vidência. Cordas de aço… - Estalou a língua. - Uma judiação para mãos delicadas. 

- Mas o som vale a pena.

- O sacrifício pela música… - suspirou com tristeza. - Sei bem o que é isso. As pessoas sempre me perguntam por que me coloquei nesse caminho e sei lá… - Pensou um pouco. - Nunca consegui elaborar uma resposta impressionante. Então costumo dizer que é só um lance da música. Ou do que ela faz comigo. 

- Acho essa resposta bem impressionante - eu disse, fascinado. - E o que a música faz com você? É segredo ou posso saber?

- Segredo não é - ele riu -, mas não sei a resposta. O que a música faz com você? 

- Hum - Pensei. - É. Também não sei. 

- A música não é uma opção - disse ele. - Não vem de fora para dentro. Mas de dentro para fora. É como uma extensão do meu corpo. Um reflexo da minha alma.

- Você toca profissionalmente? 

- Ahã. - E mudou de assunto: - Mas seus dedos estão num estado lamentável… Há quanto tempo você não tocava violão, hein, Bombinha? A pele dos dedos desacostuma.

- Eu não tinha muito tempo quando trabalhava, então…

- Mais um workaholic, puta merda… - Ele meneou a cabeça e, por uma fração de segundo, enxerguei no gesto a reação do Obito, balançando seus longos cabelos, reprovando os compromissos inadiáveis do pai. Tobi ainda sorria seu sorriso metálico: "Se ele me obrigar a ser médico, eu fujo de casa." - Mas fiquei curioso, Bombinha… Você não gosta de ser observado porque…? 

Mordi o lábio, confuso. Ele continuou. 

- Porque te deixou nervoso, entendi.

- Não! - exclamei.

- Deixo, sim.

- Não é isso! É só que…

- É só o que? 

- Eu… 

- E não é pouco, não. - Sorriu. - Eu te deixo muito nervoso! Olha só! 

- Meu Deus! - eu disse, envergonhado. - Você é impossível. 

- Ah, para de mentir! - Balançou a cabeça. - É feio para alguém de meia-idade. 

- Meia-idade? 

- Eu vi as rugas na sua testa.

- Eu não tenho rugas! - Afastei a franja da minha cara e provei para ele. - Olha aqui. Cadê? Onde estão as rugas?!

- Agora desapareceram - disse ele. - Mas antes eu te dava uns cinquentinha para você. 

- Mais que carai?! - Fiquei de boca aberta. - É a idade do meu pai! 

- Do meu também. Só que ele parece um garotão.

O Azar É SeuOnde histórias criam vida. Descubra agora