Capítulo 24

41 4 27
                                    

Era a primeira vez que eu viajava para O Vale do Fim. Nunca tinha ido para lá. Nem nos tempos da faculdade. Não que eu não fosse adepto às ervas proibidas que meus colegas diziam fumar naquela região de relevo acidentado e trilhas embrenhadas na mata, eu só não achava que precisava me deslocar para tão longe só para fumar um. 

Não conhecer o Vale do Fim é uma falta gravíssima para  um habitante de Hinokoku como eu. Imperdoável. Motivo de piada numa mesa de bar. 

Distrito de Kawashima, Vale, como o apelidaram os habitantes da Zona da Mata, é um povoado com ruelas de pedra e chão batido, situado a 93 quilômetros de Konoha. Para ter acesso a tudo o que eu conhecia por fotografia e de ouvir falar (os restaurantes intimistas no centrinho, com meia dúzia de ruas, as rodas de música e, especialmente, o Parque Estadual do Vale do Fim, com suas grutas, montanhas e as Estátuas dos Fundadores, uma corredeira cor de ciano que despenca em queda livre), tivemos de percorrer mais de vinte quilômetros de uma precária estrada quase totalmente de terra, iniciada em Kawashima. Subir, subir e subir. Era um morro que não acabava mais! 

Ainda bem que podíamos contar com o Land Rover Defender, toda sua tração e potência; a garantia de um final feliz em roteiros imprevistos. Uma chuva braba, por exemplo, poderia até complicar, mas dificilmente impedirá nossa chegada ao centrinho do Vale. Um alívio, pensei comigo mesmo; sempre morri de medo de trovões, relâmpagos e raios (ah, sim, já falei isso). Mesmo que, no interior do carro, a sensação fosse a de que eu tinha sido jogado dentro de um liquidificador, de tanto que o carro chacoalhava. 

Em parte por culpa do Cara. 

Cruz credo! Vou te contar! Para que tanta pressa? Era para me impressionar, por acaso? E de que maneira isso podia ser impressionante se eu tinha que me agarrar a qualquer coisa sólida que encontrasse pela frente quando a carcaça parecia se soltar das molas e pular cinco metros acima dos buracos? 

Ah, certo, tudo bem. Na hora em que agarrei o joelho dele (tudo muito despretensioso e ingênuo) até que foi emocionante. 

— Ei! — reclamou, olhando-me de esguelha. — Meu joelho está tão firme quanto o seu! 

— Desculpa — tirei a mão imediatamente. — É que... é que... 

— Sem problema. — Ele sorriu e afundou o pé no acelerador como se estivesse perdendo a liderança de um rally. — Se a situação piorar, pode me agarrar. Eu não ligo. 

Fiquei calado, mal podendo acreditar. Não dava para acreditar. Nem nele, nem na circunstância. 

Em Kawashima, em asfalto firme, cheguei a me esgueirar pelo teto solar. O Cara me incentivou, diminuindo a velocidade (pelo menos nessa hora, ele diminuiu). Abri os braços e deixei o vento beijar meu corpo, meu rosto, levantar meu cabelo. “U-hu”, até gritei. 

Ele se divertiu com aquilo. Mais do que eu, aliás. Depois, quando meu traseiro voltou a ocupar o banco do carona, ele disse: “Adoro você, Dei”, fazendo meu estômago dar cambalhotas ainda mais perigosas do que as curvas da estrada. Agora, no entanto, se eu enfiasse minha cabeça pelo teto solar, correria o risco de tê-la arrancada do resto do corpo. E comeria poeira. 

Conforme avançávamos na estrada esburacada, sempre subindo, sempre sacudindo, o frio aumentava, embora o nevoeiro tivesse dado lugar a um céu muito limpo. Um céu azul de outono. Quando finalmente estacionamos na primeira ruela de pedregulhos, no centrinho do Vale, aproveitei para me agasalhar com mais um suéter de lã sob o casaco. Fechei o zíper, ajeitei o cabelo e fiquei esperando, observando o Cara vestir uma blusa de moletom cinza-chumbo (estampada com a palavra “London”) por cima da Hering preta. Eu o acompanhei até a mercearia, desviando de três pangarés no caminho. 

O Azar É SeuOnde histórias criam vida. Descubra agora