Capítulo 11

40 6 0
                                    

A chuva não voltou a cair. Na subida da Serra da Névoa, as nuvens haviam se dispersado e dava para ver um pouco de horizonte, com montanhas verdes e rochas colossais, todo em meio a névoa. Ele sugeriu uma parada no mirante, para admirar a paisagem, mas fui contra. 

-- Ah, vai - insistiu. - Se você soubesse como fica sexy com as minhas roupas…

- Não, nada de paradinha! - bati o pé, com as bochechas coradas. 

Como se tivesse sido fácil suportar os olhares enviesados do Satoru (provavelmente me confundiu com uma moça. Acredite, acontece muito.), mesmo depois de eu ter amarrado a calça de moletom bem firme na cintura, para não ficar caindo. Coisa que Satoru deveria ter feito com a sua própria calça, em vez de oferecer a visão do inferno que era o seu cofrinho. 

Quando deixamos a MR-43 e pegamos a entrada para Konoha, já passava das sete. Nessa altura, o sr. Desperdício sabia que, somadas, minhas dívidas giravam em torno de 21 mil. Eu, por outro lado, sabia que ele morava fora e tinha voltado ao país para um compromisso de família, embora não tenha se aprofundado no assunto.

Em frente ao Parque Senju, na entrada de Konoha, o celular dele tocou. Ele estacionou e atendeu.

- Problemas na locadora onde eu deveria devolver o Audi. - disse para mim, desligando o telefone. - Posso guiar para lá?

- Claro. 

Quinze minutos depois, a van parava junto ao meio-fio da imensa locadora de veículos. As luzes dentro da loja e em volta dos carros em exposição eram enjoativamente claras, de arder os olhos. Não desci da van. Mas, pelo espelho do carona, reparei quando ele começou a tirar a sua bagagem do carro e colocar na calçada. Enfiei a cabeça na janela. 

- O que está fazendo? 

- Liberando a van para você. - Explicou o óbvio que não me interessa saber. - Isso aqui vai demorar. 

- Eu espero. - Ele tinha sido tão legal comigo, não custava nada retribuir com a simpatia. Além do mais, eu não queria me despedir. Não ainda. - Depois te leve aonde for.

- Eu pego um táxi, fica tranquilo. 

- De jeito nenhum. 

- É sério - insisti, segurando o estojo do Martin D-18 com uma mãe e fechando a porta da van com a outra. Eu não podia acreditar que o Martin D-18 estivesse indo embora sem que eu tivesse tido a chance de deslizar meus dedinhos pela madeira polida. Eu nem tinha visto a madeira polida! - Você precisa descansar, olha só para você! 

Fiquei sem graça. Mas logo depois ele estava rindo, então relaxei e ri também. 

Por mais que eu quisesse, eu não podia insistir demais. Passar a imagem do garoto azarado, carente e desesperado outra vez. Assim, suspirei com pesar e aceitei a derrota:

- Você venceu.

- Sempre.

E agora? O que eu tinha de fazer? Descer da van e me despedir? Como? Aperto de mão? Um abraço? Beijinhos? 

Mas ele tomou iniciativa. Deixou o violão encostado na van. Ajeitou a mochila nas costas e se aproximou da janela. Eu me afastei e ele se debruçou ali.

- Obrigado pela carona, Dei.

- Obrigado por salvar minha vida… Ei! Você não me disse o seu nome.

Ele ficou muito quieto, olhou para um lado, para o outro, mordeu o lábio, coçou o queixo. E voltou-se para mim. 

- Essa coisa de nome, sei lá… - disse, vagamente. - É uma regra social tão sem sentido! - Beliscou o meu ombro. - Não acha? 

Fala sério, porra! Às vezes, ele parecia maluco.

- Não. - Franzi a testa, meio confuso, meio com vontade de rir. - Era para achar? 

- Por exemplo, se eu dissesse a você que meu nome é Juhahwawebibos… acredite, seria perfeitamente possível… toda a atração que você sente por mim desceria pelo ralo no mesmo segundo. - E deu de ombros, como se fosse a pessoa mais encantadora do universo. Gostei disso e me movi no assento para ouvir melhor. - Mas já que regras são regras… pode me chamar de Cara.

- Cara? - Cruzei os braços.

- Oi, Cara. Tchau, Cara. Cala a boca, Cara - disse, experimentando a idéia. - É. Fica bom assim. 

- Mas… por quê?

- Meu nome é broxante. 

Então não aguentei e comecei a rir.

- É uma revelação para o terceiro encontro - disse ele. - Ou quarto. Quando você estiver tão de quatro por mim que nada vai atrapalhar o meu caminho. 

- De quatro por você? - Balancei a cabeça, perturbado com essa conversa de loucos. - Aí, Aí. Você é tão seguro de si. Como se fosse totalmente irresistível…

- Não está curioso para descobrir, Bombinha? - provocou, com um sorrisinho torto. - O meu nome, quero dizer.

Suspirei. Depois soltei os ombros. 

- Tá certo… você venceu de novo. - Ele era maluco, mas sabia mexer comigo - Até algum dia então… Cara.

- Até amanhã às sete da noite. - Deu um tapinha na van e saiu puxando a mala de rodinhas. Por sobre o ombro, ainda gritou: - E não se atrase!

Então sumiu de vista. Arrastei-me para o banco do motorista sem parar de pensar nele e de rir comigo mesma durante todo o caminho até em casa.

Eu estava rindo. Sozinho. Incrível como o tiroteio parecia distante.

Foi só quando subi as escadas de casa para o segundo andar e girei a chave na fechadura é que tive um pensamento infeliz. Ainda que ele soubesse meu sobrenome do mesmo jeito que sabia o meu nome, duvido que ele me procure nas redes sociais. E se ele procurar meu endereço, acho que vou chamar a polícia. 

Putz, até quando a sorte sorria para mim, sorria com um dente faltando.

O Azar É SeuOnde histórias criam vida. Descubra agora