A chuva não voltou a cair. Na subida da Serra da Névoa, as nuvens haviam se dispersado e dava para ver um pouco de horizonte, com montanhas verdes e rochas colossais, todo em meio a névoa. Ele sugeriu uma parada no mirante, para admirar a paisagem, mas fui contra.
-- Ah, vai - insistiu. - Se você soubesse como fica sexy com as minhas roupas…
- Não, nada de paradinha! - bati o pé, com as bochechas coradas.
Como se tivesse sido fácil suportar os olhares enviesados do Satoru (provavelmente me confundiu com uma moça. Acredite, acontece muito.), mesmo depois de eu ter amarrado a calça de moletom bem firme na cintura, para não ficar caindo. Coisa que Satoru deveria ter feito com a sua própria calça, em vez de oferecer a visão do inferno que era o seu cofrinho.
Quando deixamos a MR-43 e pegamos a entrada para Konoha, já passava das sete. Nessa altura, o sr. Desperdício sabia que, somadas, minhas dívidas giravam em torno de 21 mil. Eu, por outro lado, sabia que ele morava fora e tinha voltado ao país para um compromisso de família, embora não tenha se aprofundado no assunto.
Em frente ao Parque Senju, na entrada de Konoha, o celular dele tocou. Ele estacionou e atendeu.
- Problemas na locadora onde eu deveria devolver o Audi. - disse para mim, desligando o telefone. - Posso guiar para lá?
- Claro.
Quinze minutos depois, a van parava junto ao meio-fio da imensa locadora de veículos. As luzes dentro da loja e em volta dos carros em exposição eram enjoativamente claras, de arder os olhos. Não desci da van. Mas, pelo espelho do carona, reparei quando ele começou a tirar a sua bagagem do carro e colocar na calçada. Enfiei a cabeça na janela.
- O que está fazendo?
- Liberando a van para você. - Explicou o óbvio que não me interessa saber. - Isso aqui vai demorar.
- Eu espero. - Ele tinha sido tão legal comigo, não custava nada retribuir com a simpatia. Além do mais, eu não queria me despedir. Não ainda. - Depois te leve aonde for.
- Eu pego um táxi, fica tranquilo.
- De jeito nenhum.
- É sério - insisti, segurando o estojo do Martin D-18 com uma mãe e fechando a porta da van com a outra. Eu não podia acreditar que o Martin D-18 estivesse indo embora sem que eu tivesse tido a chance de deslizar meus dedinhos pela madeira polida. Eu nem tinha visto a madeira polida! - Você precisa descansar, olha só para você!
Fiquei sem graça. Mas logo depois ele estava rindo, então relaxei e ri também.
Por mais que eu quisesse, eu não podia insistir demais. Passar a imagem do garoto azarado, carente e desesperado outra vez. Assim, suspirei com pesar e aceitei a derrota:
- Você venceu.
- Sempre.
E agora? O que eu tinha de fazer? Descer da van e me despedir? Como? Aperto de mão? Um abraço? Beijinhos?
Mas ele tomou iniciativa. Deixou o violão encostado na van. Ajeitou a mochila nas costas e se aproximou da janela. Eu me afastei e ele se debruçou ali.
- Obrigado pela carona, Dei.
- Obrigado por salvar minha vida… Ei! Você não me disse o seu nome.
Ele ficou muito quieto, olhou para um lado, para o outro, mordeu o lábio, coçou o queixo. E voltou-se para mim.
- Essa coisa de nome, sei lá… - disse, vagamente. - É uma regra social tão sem sentido! - Beliscou o meu ombro. - Não acha?
Fala sério, porra! Às vezes, ele parecia maluco.
- Não. - Franzi a testa, meio confuso, meio com vontade de rir. - Era para achar?
- Por exemplo, se eu dissesse a você que meu nome é Juhahwawebibos… acredite, seria perfeitamente possível… toda a atração que você sente por mim desceria pelo ralo no mesmo segundo. - E deu de ombros, como se fosse a pessoa mais encantadora do universo. Gostei disso e me movi no assento para ouvir melhor. - Mas já que regras são regras… pode me chamar de Cara.
- Cara? - Cruzei os braços.
- Oi, Cara. Tchau, Cara. Cala a boca, Cara - disse, experimentando a idéia. - É. Fica bom assim.
- Mas… por quê?
- Meu nome é broxante.
Então não aguentei e comecei a rir.
- É uma revelação para o terceiro encontro - disse ele. - Ou quarto. Quando você estiver tão de quatro por mim que nada vai atrapalhar o meu caminho.
- De quatro por você? - Balancei a cabeça, perturbado com essa conversa de loucos. - Aí, Aí. Você é tão seguro de si. Como se fosse totalmente irresistível…
- Não está curioso para descobrir, Bombinha? - provocou, com um sorrisinho torto. - O meu nome, quero dizer.
Suspirei. Depois soltei os ombros.
- Tá certo… você venceu de novo. - Ele era maluco, mas sabia mexer comigo - Até algum dia então… Cara.
- Até amanhã às sete da noite. - Deu um tapinha na van e saiu puxando a mala de rodinhas. Por sobre o ombro, ainda gritou: - E não se atrase!
Então sumiu de vista. Arrastei-me para o banco do motorista sem parar de pensar nele e de rir comigo mesma durante todo o caminho até em casa.
Eu estava rindo. Sozinho. Incrível como o tiroteio parecia distante.
Foi só quando subi as escadas de casa para o segundo andar e girei a chave na fechadura é que tive um pensamento infeliz. Ainda que ele soubesse meu sobrenome do mesmo jeito que sabia o meu nome, duvido que ele me procure nas redes sociais. E se ele procurar meu endereço, acho que vou chamar a polícia.
Putz, até quando a sorte sorria para mim, sorria com um dente faltando.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Azar É Seu
Fiksi PenggemarDeidara está parado num engarrafamento, pensando em como sua vida é azarada. Sem emprego, atolado em dívidas, ele não imagina que está prestes a viver a grande coincidência da sua vida. O motorista do carro ao lado está buzinando, tentando se comuni...