Rejeitada - 1/2

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Blayr/ 41

Cheguei na cozinha e fui procurar qualquer coisa calmante na geladeira, assim que a abri fiz uma careta pela claridade cegante que me atingiu e alguém do outro lado do balcão riu, me assustei com o barulho e puxei uma faca que estava na mesa, rodeei a ilha e assim que cheguei na outra ponta encontrei Théo sentado de pernas cruzadas no chão, com um conjunto de moletom azul e um pote inteiro de sorvete de menta na mão.

- Vai conter uma ameaça com uma faca de passar requeijão? - Ele disse tentando segurar o riso e apontando para as minhas mãos, merda, realmente era uma faca sem ponta e completamente inútil.

- Fica esperto, ela é muito mais perigosa do que parece. - Disse a apontando para ele em uma postura de batalha espalhafatosa que provavelmente vi em um filme.

- Nossa, poupe minha vida por favor princesa guerreira. - Ele disse rindo, forçando um sotaque e levantando os braços em rendição. Abaixei a faca e sentei mais a frente dele.

- O que está fazendo aqui tão tarde? - perguntei enquanto brincava com a minha faca perigosa.

Ele mostrou o sorvete, como se aquilo fosse motivo suficiente. - Posso perguntar o mesmo para você.

- Não estou com sono. - Admiti e silêncio reinou, decidi que era a hora de falar. - Desculpa por hoje, Théo. - Falei sem o olhar.

- Por que acha que me deve desculpas? - Ele perguntou franzindo o cenho.

- Porque você já tinha pedido desculpa por aquele erro, eu não tinha o direito de usa-lo contra você. - Ele assentiu meio contido e eu continuei. - Você está arriscando tudo que você ama para me esconder aqui e mesmo assim eu só sirvo para te fazer passar raiva,eu disse hoje que não era uma criança para você ter que cuidar de mim, mas agora percebi que ajo como uma todo dia. - Assim que eu parei ele se levantou, achei que ele ia embora e já imaginei até ele me expulsando do casarão, mas ele só foi até uma das gavetas e pegou outra colher, enfiando ela no sorvete e logo em seguida sentando do meu lado.

- Sabe porque eu não brigo com você por causa disso? - Ele perguntou enquanto pegava uma colherada de sorvete e entregava para mim.

- Porque você quer me usar para um plano maléfico onde quanto mais irritada eu estiver mais vou destruir? - Perguntei enquanto fazia uma voz engraçada e engolia o sorvete extremamente gelado com uma careta, Théo ria de quase chorar, suas covinhas aparecendo indicavam que aquele era um sorriso verdadeiro, um sorriso que eu sei que poucas pessoas tiveram o prazer de vislumbrar.

- Você é muito boba, sabia? - Ele falou fazendo um barulho engraçado que acontecia toda vez que ele tentava conter uma risada.

- E você gosta. - Revidei.

Ele sorriu e logo após olhou para baixo, o clima da conversa mudou totalmente a partir daquele segundo, sentia que ele iria comentar sobre algo que o afetava. - Eu era como você, Blayr. - Ele admitiu. - Eu te entendo porque era exatamente como você. - Seus olhos esmeralda se anuviaram como se ele tivesse entrando em memórias a muito ignoradas, memórias que ele se forçou a esquecer.

- Não precisa falar, eu acredito em você. - Disse antes mesmo que ele começasse.

- Eu preciso, não posso ficar guardando isso para sempre, principalmente quando eu sei que pode ajudar você. - Ele arfou e continuou. - Eu vi meu pai morrer, eu vi ele morrer na minha frente com 7 anos de idade, segurei ele nos braços até seu último suspiro, ainda ouço ele falando para eu ser forte e cuidar de tudo. - Sua voz caiu dois tons quando mencionou a última parte, minha vontade era abraçá-lo mas eu não conseguia me mexer, a única coisa que me diferenciava de um morto era que eu ainda piscava.
Ele respirou fundo, como se quisesse pular logo essa parte da história. - Depois disso eu já não era o mesmo, mas quando minha mãe morreu cinco anos depois e eu tive que virar rei mesmo sendo novo demais para o cargo, eu simplesmente saí de mim, gritava e destratava qualquer um que passasse por mim, machuquei pessoas e fui egoísta com meu próprio povo por estar frustrado, era para eu estar brincando com outras crianças mas ao invés disso eu estava enfurnado naquele mesmo escritório aprendendo a organizar planilhas. - Ele parou um pouco, um sorriso sem humor iluminou seus olhos. - Mas mesmo assim as pessoas me aguentaram, aceitaram meus surtos e me apoiaram quando eu mais precisava.

- Por isso aguenta os meus. - Sussurrei meio sem ar, quando Cris disse que o irmão já tinha passado por muitas coisas eu realmente não imaginei que podia ser tão pesado.

Ele pegou mais uma colher do sorvete esverdeado e continuou. - Aceito seus dias ruins porque sei que você não é ruim, só está sobrecarregada e sentindo que o mundo está contra você, então se você precisa de alguém só para ouvir você gritando e permanecer ali, fico feliz que seja eu, porque quando você estiver bem e fora de todo esse poço sem fundo que está sendo sua vida, vou poder me gabar dizendo que eu quem te ajudei a escalá-lo.

Sorri só por imaginar ele dizendo todo orgulhoso que tinha me ajudado a superar. - Obrigado. - Foi a única coisa que consegui dizer acompanhada de um sorriso gentil.

- Não precisa me agradecer, eu estou aqui para isso.

- Não está aqui para isso. - Respondi ironizando.

- Laços de parceria vão muito mais além do amor romântico, parceiros também podem ser bons amigos, irmãos ou familiares, um laço não é sobre casamento, é sobre você precisar daquela pessoa para crescer, é quando você precisa daquela pessoa na sua vida, é quando ela te mostra que você pode ser feliz sozinho com a ajuda dela, mas não por ela. Talvez não precisemos ser um casal, talvez eu só esteja aqui para ser seu apoio, ser a pessoa que verdadeiramente te entende em meio a esse caos.
Aquilo doeu, doeu como uma traição, senti como se tivesse sido descartada antes mesmo de ser escolhida, eu não amava Théo mas já gostava o suficiente para ficar machucada com aquilo.

- É, pode ser. - Falei tentando não parecer afetada, o rosto duro feito pedra e a expressão fria como o gelo que habitava o fundo do meu mar nebuloso. - Acho que não deve fazer bem comer sorvete nesse frio, literalmente está nevando lá fora. - Desviei o assunto.

- Não vamos morrer. - Ele disse calmamente enquanto olhava a fina neve descer dos céus, me juntei a ele, colheres nas mãos e olhos vazios, os dois jogados no chão da cozinha olhando além de uma janela, muito além dela, cada um estava na sua própria mente, domando demônios e tomando as rédeas de si mesmo, eu fazia isso todo dia, depois de hoje tenho certeza que ele faz o mesmo.

- Devíamos dormir. - Falei depois de alguns minutos sentados.

Ele assentiu, levantou e guardou o resto do sorvete, subimos as escadas em um silêncio meio desconfortável, o peito dele se erguia pouco e muitas vezes como se estivesse hiperventilando.

- Você está bem? - Perguntei preocupada segurando-o pelo braço, seus olhos fixaram nos meus, eletricidade pura circundava nós dois, eu queria beijá-lo, acabar com toda essa distância irritante entre nós dois, queria de verdade, mas não podia, não depois de ele dizer na minha cara que não precisávamos ser um casal.

Engoli em seco. - Boa noite, Théo. - Falei forçando um sorriso quando tudo que eu queria agora era estapeá-lo por me fazer achar que me queria também.

- Boa noite, Blayr. -Ele respondeu com o mesmo sorriso forçado que eu.

Soltei seu braço e entrei no quarto sem olhá-lo mais uma vez, fechei a porta e corri para a cama, me obrigando a dormir, a só apagar, deletar aquela frase, mas como já esperava, não consegui, rolei na cama até o nascer do sol, minha única companhia a noite toda era a voz de Théo repetindo na minha cabeça milhões e milhões de vezes.

"Talvez não precisemos ser um casal"

"Talvez não precisemos ser um casal"

"Talvez não precisemos ser um casal"

A última filha de LilithOnde histórias criam vida. Descubra agora