Um dia, percebe-se que se tornou como aqueles com quem andas.
A contaminação é inevitável. Nossas infrações, como vírus, se espalham pelo ar.
E, no fim de cada dia, acabamos todos culpados.
Milênio 9
Ela tinha perdido controle. Estrelas perdiam o controle em situações de perigo o tempo todo. Valia a pena se culpar? Bem, se valia a pena ou não, não importava, porque ela já estava se culpando.
Klairer estava abraçada entre a cama e as cobertas, enrolada em si mesma admirando as botas vermelhas que fizeram parte de seu crime. Ela havia se prometido que nunca mais as tiraria e que as encheria com um significado que justificasse a decisão; mas agora que as encarava, não via nada além do crime que cometera e da culpa que sentia. Seu olhar deslizou para o lado de fora da janela, onde o destino dançava pelo céu e a obrigava a ler e reler e reviver o momento em que tirara a vida de um homem. Aquelas eram as noites traiçoeiras em que sua mente era predadora de si mesma.
Sentia fresco o toque na ponta dos dedos, suas mãos no inimigo, a luz escorrendo para a escuridão e dissolvendo-a até que não existisse mais nada... Era como se o matasse de novo e de novo, infinitas vezes dentro de cada segundo gravado na eternidade, desenfreada, incontrolável, imparável... Klairer não parou; até que já fosse tarde demais.
Nunca deveria ser tarde demais para alguém que era capaz de controlar o destino, mudar o passado e corrigir erros. Klairer sabia, porém, que algumas coisas estavam amarradas demais na malha do tempo para que pudessem ser facilmente movidas sem alterar outros eventos. Ressuscitar alguém, por exemplo, era praticamente impossível, já que uma vida se prendia a uma linha inteira de passado e futuro, além de se intricar com os caminhos de outras vidas.
Ela escondeu o rosto nos joelhos. Uma morte era um problema tão cheio de consequências que facilmente se tornava insolúvel. Era o nascimento de um monstro dentro dela, consumindo-a as entranhas até que não restasse mais nada em seu interior oco. Ainda assim, ela tinha arrependimento; talvez não estivesse tão vazia assim. Restava em si aquele líquido vermelho perolado e estrelado, que compunha suas mais profundas camadas, seu sangue, sua pele, sua carne, sua alma. Talvez ela ainda tivesse alma.
– Klairer... – A voz a chamou da porta.
Era Kye, encarando-a com um silêncio gritante. Talvez ele estivesse com medo de ela fazer algo com ele; ou talvez estivesse com medo de ela fazer algo consigo mesma. Talvez ele entendesse o descontrole dela; talvez tivesse pena da culpa dela. Klairer não conseguia decifrar o que se passava pela cabeça dele, por trás do silêncio. Mas logo ela pôde ver que, na verdade, o rapaz se afogava em uma mistura de tudo: compreensão, medo, pena, gratidão... E ainda estava ali, tão confuso quanto ela; tão destruído quanto ela; sustentado por seus pés à frente da porta.
Ele via nela algo que já tinha visto em si mesmo antes. Já tinha passado por tudo aquilo, quando um dia fora nada além de um jovem inexperiente fugindo dos mundos. Kye conhecia bem aquele olhar repleto de vontade de mudar o universo; conhecia bem aquele desejo de inverter-se ao avesso e nunca mais sair da prisão do próprio interior. Já escorregara para lugares escuros muitas vezes, e ainda não fazia ideia de como escapara deles. Ele certamente não sabia o que fazer agora.
Mas aquele silêncio torturante não duraria por muito tempo. Kye procurava em sua mente algo para dizer que salvasse Klairer da própria consciência. Mal sabia ele que tais palavras não existiam, já que nada era capaz de cicatrizar uma alma quebrada além da passagem do tempo. Ele não conseguiria acelerar o processo, mas aquilo não o impedia de tentar ajudar.
O que podia fazer? O que podia dar para ela que a salvasse?
– Só vim dar boa noite... – Ele murmurou. Definitivamente um "boa noite" não seria o suficiente, mas era tudo que ele tinha para oferecer no momento.
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Estrela Caída| Versão Em Português
Ciencia FicciónEm um universo predeterminado, ela tinha escolhas; e, em uma galáxia de prisões e caminhos perigosos, ele conseguiu criar seu próprio caminho. Quando Klairer e Kye se conheceram nos confins de uma prisão branca e imaculada, na hora e no lugar perfei...