46. Lembre-se de Si Mesmo

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Lembre-se de si mesmo, seu idiota.

Lembre-se dela.

Lembre-se da vida que nunca teve.

A única em que realmente viveu.

Novo Milênio 7

Ela o observava de longe.

No meio da calçada movimentada de um dia de semana, centralizada na correnteza da multidão, Klairer se mantinha parada, os ombros ocasionalmente esbarrados quando passavam por ela. Era uma rocha fixa no rio de pessoas, rodeada às margens pelos prédios da cidade e pelos veículos barulhentos da rua; era um pilar estável no centro da correria diária.

Deslocada, Klairer sabia que não fazia parte daquele mundo; não fazia parte daquela agitação, daquela cadeia. Ela era apenas uma observadora alienígena, irrelevante, empurrada lado a lado em sua insignificância.

Mas aquilo não importava; não queria ser percebida. Escondia-se atrás do fluxo, tal qual uma fera prestes a dar um bote impetuoso, os olhos num alvo distante. As cabeças que passavam por ela eram como gramíneas, oscilando na brisa de verão, enquanto Klairer espreitava além de seu alcance, camuflada, imperceptível, faminta.

A presa se aproximava, tão mergulhada na correnteza que nem sabia que estava se afogando. Corria, não tanto por escolha própria, na direção da fera, incapaz de ver-se caindo nas garras dela. Tinha a cabeça baixa, os olhos na tela de um aparelho que roubava sua atenção, sempre apressado, ansioso. Não podia se atrasar. Ninguém ali, preso naquele mundo industrial, podia se atrasar. Estavam todos apressados, todos nos limites do tempo, indiferentes ao natural compassar da vida. O alvo de Klairer não era diferente.

Ele não sabia, porém, que também não fazia parte daquele mundo; que aquela rotina também não era sua; que aquele desespero não existia na vida que deveria ter. O Conselho era esperto; o jogara em um mundo em que ele se manteria sempre ocupado demais para refletir sobre o quanto sua vida estava errada. Para a fortuna dele, porém, ainda que não tivesse nenhuma noção de que existia algo melhor além de seu diminuto universo, Klairer sabia de tudo aquilo. E ela estava ali para resgatá-lo; para salvá-lo da maldição que ela própria havia jogado nele ao roubá-lo de um destino ainda pior.

Quando o alvo estava próximo o suficiente, Klairer se preparou para o bote. Apertou com firmeza nas mãos as peças de roupa que levava dobradas e caminhou rapidamente na direção do rapaz, deixando seus corpos em rota de colisão. Ele nem foi capaz de percebê-la, vidrado no que estava em suas mãos, o aparelho que o revelava a passagem do tempo como a constante contagem regressiva de uma bomba; como ele podia acordar uma manhã sequer sem se sentir esmagado por aquela ansiedade?

Uma desconhecida esbarrou nele com força, fazendo-o derrubar o aparelho no chão e perdê-lo abaixo dos pés impetuosos da multidão alienada.

Ele fora acordado.

– Olha o que você fez! – Gritou o rapaz para a desconhecida, apontando com uma mistura de raiva e desespero para o aparelho destruído no chão. Sua vida estava arruinada. Até que comprasse outro, pelo menos.

Klairer espremeu os lábios. Se ele se lembrasse do que era realmente importante, a agradeceria por ter quebrado suas correntes. Mas ele não se recordava. Ela o tinha feito se esquecer de tudo: de cada pensamento, ideia e reflexão, de cada descoberta sobre a existência e seu valor, de cada memória. E agora estava perdido entre suas pequenas mundanidades.

Ele caíra da sabedoria dos céus para afogar-se na lama do ordinário.

E, se ela quisesse resgatá-lo, precisava ensiná-lo o caminho de volta.

Estrela Caída| Versão Em PortuguêsOnde histórias criam vida. Descubra agora