CAPÍTULO 12

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O tal número Um se sentou numa cadeira e ficou observando Gabriel e Número Dois se enfrentarem. Seu rosto demonstrava desdém, ou poderia ser inveja, era difícil ler a linguagem corporal deles. Pareciam estátuas as vezes, imóveis e silenciosos. Ele tinha raspado a cabeça, pois pintou os cabelos para se disfarçar quando libertou Gabriel. Era como estar na presença de Vengeance. O Vengeance careca e carrancudo de anos atrás.
Número Dois não caiu na armadilha de Gabriel, mas acabou deixando seu bispo vulnerável e Gabriel o comeu. Antes que sorrisse, porém, Dois encerrou a partida com um xeque-mate. Já ele era o Vengeance de agora, cabelos negros, embora curtos, e fisionomia agradável.
"Você pelo menos conseguiu alguns minutos a mais que meu pai." O outro, Um, bufou.
"Papai diz que você depende demais de sua vidência, Dois. O que seria de você sem ela?" Inveja, Gabriel constatou.
Dois não respondeu. Eles não conversavam como pessoas normais.
"Vá falar com Jonathan." Um ordenou. Dois se levantou e saiu.
"Que tal agora fazermos algo que eu gosto, doutor? Vamos ver se essas suas drogas são boas mesmo?" Ele bateu um punho no outro.
Gabriel balançou a cabeça dizendo que não. Ele o chamaria de covarde, é claro, mas não estava a fim de lutar contra ele, seria como enfrentar Vengeance, mas um Vengeance muito, muito cruel.
Ele, porém, o olhou, seus olhos cristalinos brilharam e saiu. Gabriel, que estava prendendo a respiração, soltou todo o ar de seus pulmões. Ele e a dor eram velhos companheiros, mas aquele Nova Espécie louco lhe proporcionaria muita dor, ele estava certo disso. Gabriel juntou as peças, desmontou o tabuleiro e as guardou.
Conhecimento é poder.
O jogo o ajudou a entender como a mente de Dois funcionava. E deu-lhe uma idéia de como eles se relacionavam. Nada novo, porém. Novas Espécies sempre seriam Novas Espécies, não importavam suas diferenças. O DNA deles garantia que algumas coisas fossem imutáveis. Vengeance era, como um pregador poderia dizer, a pedra de esquina que os construtores rejeitaram. Seu pai seria um desses construtores, ele não conseguiu nem mesmo o fazer  engravidar Ann. Michael, outro construtor, vendeu embriões para cientistas concorrentes de seu pai, devido ao ressentimento, mas também não eram embriões viáveis. No fim das contas, ele teve um sucesso com Peter e Grace e com Livie por pura sorte. O idiota não sabia o que estava fazendo.
Dean Bishop, o pai, esse sim soube o que fazer. Ele criou um clone perfeito e ainda expandiu suas qualidades psíquicas. Gabriel adoraria passar um tempo com ele. E Anderson! Número Um e número Dois eram o futuro.
Ele se deitou e deixou seus sentidos ampliarem.
"Isso é coisa de Felino? Subir no telhado? Eu, como sou canino, não gosto muito de alturas." A voz de Dois era baixa, rouca, mas amistosa. Era como ouvir Vengeance falando. Seu amigo Vengeance. Que de certo modo, o amava.
"Eu me sinto seguro aqui, veja, posso ver todo o lugar, todo o bairro."Jonathan tinha uma voz rouca, baixa, com entonação de criança.
"Ninguém vai atacá-lo aqui, Top Cat. É sério que você gosta de ficar aqui ainda?" Gabriel sorriu. Top Cat? Desenho infantil das antigas? Jonathan estava parecendo ser muito diferente das outras crianças Nova Espécie.
"Eu não sei porque, Noah, mas ver em volta, ter uma visão de todo o bairro me acalma. Não acalma você?"
"Não. Talvez por que eu seja o perigo."   Dois rosnou e o menino riu.
"Você viu? Viu que eu tentaria conhecê-lo?" Curioso, Gabriel pensou. Conhecer quem? Gabriel não tinha visto Jonathan, só o ouvia. Ele cheirava como filho de Leo. Tinha sido uma grande surpresa.
"É claro que eu vi, Top Cat. Estamos conectados, quantas vezes eu preciso te dizer?" A voz de Dois, conversando com Jonathan era amável. Gabriel não sentia carinho, mas também não havia aversão.
"Por que correu? Não queria falar com ele?"
"Ele me olhou com desprezo, com raiva, ele ia me odiar, ele perguntou: 'Quem é você?' com ódio, eu acho. E vocês estavam vendo. Eu achei melhor voltar, eu fiquei com medo de vocês..."
"De matarmos ele? No meio de todas aquelas pessoas? Que tipo de idiotas você acha que somos? Quer dizer, Adam é um idiota, mas eu não sou." Jonathan riu de novo. Quem diria, o clone Nova Espécie assassino tinha jeito com crianças.
"Papai disse que ele me levaria embora, que me prenderia na Reserva, no meio do mato, longe dele e longe da mamãe. Ele vive isolado, Noah. Disse que eu não poderia fazer amigos, por que todos que moram no lugar onde ele mora, são loucos."
"E mesmo assim você foi vê-lo? Não acreditou no papai?" Ver aquele Nova Espécie frio chamar Andrew de papai era estranho, Gabriel pensou.
"Eu... As vezes acreditamos em coisas que não são verdade. Não estamos mentindo, só não sabemos direito como as coisas são." Gabriel sorriu. Quantos anos Jonathan teria? Ele chegou  na Reserva quando os trigêmeos tinham alguns meses, seis ou sete. Leo era um dos reclusos, ele vivia numa caverna numa montanha. Como ele engravidou uma humana? Só pode ter sido antes dele, Gabriel, chegar lá, mas aí Jonathan seria mais velho que os trigêmeos, ou teria a idade próxima. Mas ele era muito infantil, muito criança. É claro que os trigêmeos eram precoces demais, mas até John parecia mais velho que ele.
"Então, você fugiu para protegê-lo de nós, mesmo ele tendo te olhado com desprezo? Não consigo entender, Top Cat." É claro que aquela casca vazia de músculos e maldade não entenderia. Gabriel pensou.
"Ele não sabia que estava falando comigo, não sabia que sou filho dele. E mamãe..." Quem seria a mãe dele? Essa era a maior dúvida de Gabriel.
Andrew Hoffman foi casado, mas o nome de sua ex-esposa não aparecia em seu verbete na Wikipedia e Gabriel não colocava as mãos num laptop a anos.
"Sabe que sua mãe tem estado cansada, não sabe? Toda a pressão do trabalho, a dificuldade de criar você morando na cidade, a solidão. Você não deve tornar as coisas mais difíceis para ela, mas também não pode acreditar cem por cento em tudo o que ela diz. É como você disse, as vezes as pessoas falam de coisas que acreditam, mas que não necessariamente sejam verdadeiras." Jonathan suspirou.
"Acha que ela um dia vai me deixar ficar aqui com vocês?" Gabriel ficou tenso. Taí uma coisa inesperada.
"Você gostaria?"
"Eu não sei. Mas aqui, eu posso ficar no telhado, posso até dormir aqui, sabia?"
"Quer ficar aqui para poder dormir no telhado? Sério, Top Cat?" Jonathan riu.
"Ou seria por que daqui seria mais fácil entrar num avião e ir para a Califórnia? Você viu algumas das outras crianças, não viu?" Gabriel se mexeu inquieto. Ele amava John. John gostava muito do zoológico, tinha um cavalo lá.
"Sim. Um menino e uma menina. Ela tinha um pônei, ele tinha um cavalo. Ele era menor que eu, ela era... Eles pareciam felizes. Eu ouvi a conversa deles." Dito e feito. John e Flora, ou John e Ann Sophie.
"Eles são filhos de Novas Espécies normais, talvez até morem  em Homeland e estavam lá visitando. Homeland é como uma das nossas cidades. Seria diferente pra você, Top Cat."
"Eu sei. Mas eu prefiro ficar aqui, pois fico fechado em casa o dia inteiro. Tem horas que a televisão cansa."
"Mas você sentiria falta dela?"
"Sim. Eu estou sentindo a falta dela agora. Muita falta."
"Isso por que você é só um bebê. Um ridículo bebê mimado, que só tem tamanho." A voz de Um se ouviu.
"Eu prefiro ser um bebê que um idiota. E não fui eu que o chamei de idiota." Um rosnou.
"Eu só disse a verdade, Adam." Dois completou.
"Eu teria atirado, nele, Jonathan. Não seria difícil acertar bem no coração dele e fugir." Um contou. Ele riu e Gabriel ouviu um barulho de algo pousando com força no chão. Ele tinha saltado.
"Ele faria isso, Top Cat. Eu não seria capaz de impedir, sabe que ele é mais forte que eu. Talvez devamos conversar com o papai, tentar convencê-lo a te levar lá para você conhecê-lo. O que acha? Você pediu pra ir no zoológico e nós o levamos, mesmo sabendo que você devia ter descoberto alguma coisa."
"Você viu? Viu como eu fiquei sabendo do Zoológico?" Interessante. Ele não sabia sobre seu pai.
"Uma reportagem numa revista. Numa das vezes que você saiu a noite, escondido." Dois disse sem nenhuma emoção na voz. Jonathan seria tão inocente que não notava que ele era cruel e mal? Gabriel ficou muito curioso, queria muito conhecer esse filho de Leo.
"Está na hora, Top Cat. Papai não demora a vir ler pra você." Dois disse e logo após, os ouvidos de Gabriel registraram o barulho do pouso dele no chão. Pouco barulho, calculado, mas o pouso de Jonathan quase não foi captado. Ele era felino, é claro.
Gabriel inspirou fundo. Andrew tinha planos grandes, quase impossíveis. Anderson teria lhe ensinado como clonar Novas Espécies? Tudo era muito nebuloso, Gabriel tinha muito pouco para processar. Mas sabia que ele era uma parte importante nessa história, isso era certo.

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