06

2.5K 275 89
                                    


AZRIEL

Deixei que as sombras me escondessem ao velar o sono da feérica deitada no sofá da Casa do Vento, seus lábios entreabertos fazendo um barulhinho fofo e sua expressão tão tranquila me embalando em um sonho acordado. Não lembro nem de piscar enquanto a observava detalhadamente.

Pensei no que ela havia contado mais cedo; sobre o poder de Tamlin enclausurando sua irmã, o ataque de espinhos de freixo, o sofrimento não por si mesma, mas por saber que tudo aquilo fora para atingir a amiga. Ela não hesitou em nenhum momento. Foi verdadeira e tão, tão corajosa contando-nos do ocorrido.

Já era madrugada e eu ainda me espreitava entre as sombras, não ousava — e nem queria — dormir. O sono nem me atraía, de qualquer forma. Eu estava ocupado demais. Eu a senti acordar antes mesmo de vê-la coçando os olhos lentamente. Ela varreu o local com alguns olhares para acostumar a visão à escuridão da sala, exceto por uma lamparina na escrivaninha da sala e a própria lua iluminando o local através da janela aberta perto da mesa de madeira.

__Eu tenho poderes, sabe. — ela disse de repente, fechando os olhos por um momento. Não sabia se estava falando sozinha ou comigo, então permaneci no silêncio da escuridão. — Um deles é sentir as coisas. Sentir as pessoas. — e eu soube que ela estava falando comigo. Caminhei silenciosamente de onde estava, coçando a nuca, um pouco envergonhado. Ouvi sua risadinha suave. — Oi, Azriel.

__Oi. — respondi num murmúrio ao encontrar seu olhar. Era iluminado mesmo na noite que caia e suas cores, uma mistura de verde, dourado e castanho, dançavam e brincavam entre si. — Você sente as pessoas? — perguntei subitamente, me surpreendendo comigo mesmo. Ela, entretanto, assentiu com simplicidade. — E com coisas, você se refere a emoções? — continuei questionando. Fiz uma nota mental para parar de ser enxerido enquanto franzia a testa com as palavras que saiam automaticamente da minha boca.

__Sim, emoções... na verdade, acho que é mais como se eu eu pudesse sentir... almas.

__Almas?

__Também não sei explicar direito essa parte. — ela sorriu com delicadeza. — Mas é uma das coisas que sinto. — e deu de ombros com mais delicadeza ainda.

Dei mais alguns passos à frente, mais próximo de onde o sofá ficava, e alcancei o copo da água que estava na mesinha de centro para entregá-la. Ela aceitou de bom grado e nossos dedos se encostaram de relance, um rubor corando minha bochecha e me fazendo abaixar a cabeça timidamente. A voz de Helena preencheu o ambiente quando agradeceu ao terminar de beber e eu prontamente peguei o copo vazio de suas mãos.

__Rhys o fez ficar de guarda essa noite? — ela perguntou, seu tom era brincalhão. Ela estava meio pálida, notei, e fiz uma segunda nota mental para reforçar no café da manhã dela. Dei de ombros tentando parecer casual. — Não queria incomodar, sinto muito por fazer você perder uma noite de sono. — e por mais que ela falasse com tanta suavidade, havia um certo receio em sua voz. Achei que minhas pernas fossem vacilar.

__Não, não. Não é incômodo algum. E fui eu quem me ofereci para ficar de guarda, de qualquer forma. — acrescentei a última parte um pouco mais baixo, olhando para a janela, além das montanhas e do céu estrelado. Senti seus olhos em mim. Ela encolheu as pernas.

__Sente-se. — pediu, sua voz tão doce... tão pura. Não consegui encontrar nenhuma palavra para negar aquela voz. Deixei que nossos olhares se encontrassem por longos segundos antes de sentar na ponta do sofá enorme e confortável, aninhando minhas asas de uma maneira que não ocupassem muito espaço. Estava me sentindo nervoso e atrapalhado, sem saber o que fazer, dizer ou como me comportar. Acredito que deu para perceber, pois Helena prosseguiu, o mais calma e delicada possível:

— Não tinha as visto antes. — ela apontou para as sombras ao meu redor. Estremeci de medo quando elas alcançaram a garota, sussurrando graciosas carícias e a fazendo corar. Medo do que a feérica sentiria daquelas sombras... daquela parte de mim. Mas ela deu um risinho e começou a brincar com as sombras. — Elas são lindas.

Aquelas palavras... tão sinceras. Ela não estava forçando aquilo, ou dizendo para me agradar. Eram reais, tinham sentido, sentimento. Por mais que tentasse manter meu rosto indescritível, tinha a sensação de que Helena sabia qualquer coisa que passava por mim. Que ela sentia.

__Elas gostaram de você. — minha voz permanecia baixa, meus olhos agora correndo pelas mãos da garota brincando com minhas sombras. — Sou Azriel.

__Eu sei.

__Não consegui me apresentar formalmente. — expliquei.

__Sou Helena. Lena.

__Ouvi dizer que não são todos que podem a chamar assim. — lancei um olhar de relance que foi captado e retribuído com um sorrisinho da garota.

__Abro algumas exceções. — meus cantos da boca repuxaram com a resposta. — Qual é o nome deste poder?

__Sou chamado de Encantador de Sombras.

__Você canta para elas? — uma pergunta sincera. Contemplei a fêmea que agora me encarava e assenti. Um brilho percorreu seus olhos.

__Não vou cantar agora, se é o que está pensando. — fui rápido em responder, ganhando um sorriso lindo em troca.

__Posso esperar. — ela deu de ombros, ainda sorrindo levemente. Aquilo preencheu lugares que eu nem sabia que existiam em mim.

__Está com dor? — questionei com um franzir de sobrancelhas ao ver um desconforto em seu rosto, as sombras dançando sobre a feérica e voltando para alguns cantos do cômodo, preocupadas. Ela negou com um balanço de cabeça, ainda parecendo desconfortável demais para alguém sem dor. Bufei e levantei para pegar um pouco do chá de mais cedo na cozinha. Servi uma xícara e levei até Helena, agora de olhos fechados no sofá. — Aqui. — disse delicadamente, encaixando a xícara em sua mão.

__Obrigada. — ela segurou minha mão junto a xícara, olhando em meus olhos como se visse através deles; como se visse minha alma. Assenti e voltei ao meu lugar, meus dedos quentes pelo toque dela. Sabia que o sono a atingiria em pouco tempo. Sua voz soou mais pesada quando falou um tempo depois: — Posso fazer uma pergunta?

__Claro. — deixei que as sombras tirassem a xícara de suas mãos quando terminou o líquido, seus olhinhos fechando mais lentamente em cada piscada. — Uma pergunta por outra.

__Sinto tanta coisa boa nesse lugar. As pessoas lá fora, posso ouvir as risadas delas como se percorressem meu sangue. Uma beleza sem fim. Como esse lugar sobreviveu ao horror de Amarantha?

__Sacrifício. Muito sacrifício. E amor. — respondi após respirar fundo e pensar por um tempo. Helena ponderou minhas palavras e sorriu com ternura, aconchegando-se mais no sofá, seus olhos fechados desde antes da pergunta ser feita. Ela assentiu devagar e pareceu se render ao sono. A visão dela dormindo pacificamente perturbava meu coração. Não de um jeito ruim, não. Era de um jeito muito bom. Bom demais pra ser verdade. Apoiei minha cabeça no sofá e permaneci mirando seus detalhes. Poderia fazer isso pra sempre.

Guardei a pergunta que me sobrava para outro momento, pensando no que diria. Helena se mexeu desajeitadamente no sofá e esticou as pernas, deixando seus pés em meu colo. Não soube exatamente o que fazer a princípio. Fiquei imóvel e minhas bochechas estavam vermelhas como pimenta, a naturalidade daquele gesto me deixou mais assustado ainda. E mais maravilhado também. Uma manta cobria desde seu quadril até além dos pés, e mesmo relutante, repousei uma mão sobre eles, a outra deixei que segurasse meu rosto enquanto me virava para admirar a feérica ainda melhor. Sei que a noite passou e a manhã já estava nascendo, e mesmo as mais belas paisagens lá fora não tirariam meus olhos daquela imagem à frente.

us | azriel  Onde histórias criam vida. Descubra agora