18 - Manual para Vascaínas

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— Uma vez eu e Micaela ficamos sozinha na casa dela. Os pais dela saíram para jantar, era aniversário de casamento. Vinte anos. A gente tinha 14 anos, estávamos movidas por filmes que assistíamos de adolescentes e tinha uma garrafa no armário da sala. Uma edição especial e que, segundo a Mica, era degustada com cuidado pra não acabar. Pré-adolescentes imprudentes. De barriga pra cima, decidimos beber. Como nos filmes. Sal, limão e a tequila especial. Foi esquisito, acho que imploramos para todos os deuses pra não dar nada de errado. Preenchemos a garrafa com água para que eles não percebessem e agimos como se nada tivesse acontecido.

Mordo os lábios, fitando Isabela.

— Acho que eles nunca descobriram que o restinho de bebida agora era água — limpo a lágrima escorrendo. — A garrafa deve estar lá ainda, no mesmo lugar. Eles nunca vão dar um sermão em nós duas pelo que fizemos.

Assim como, tonta pelo primeiro contato com álcool e o nervosismo, derrubamos um dos carrinhos da coleção do pai dela e quebramos a portinha.

— Na festa, eu bebi de novo. Foi estranho. Pensei que nunca faria isso novamente. Fernanda me fez companhia a noite inteira, nos divertimos. Foi tão... irreal. Eu comecei o dia pra baixo, por causa da excursão e estava meio sem vontade, mas foi tão... eu me senti adolescente de verdade — fito o chão. — Nem sabia que era possível. Mas não só isso, eu lembro de falar em uma conversa exatamente essas palavras "eu sou a garota mais bonita do mundo". Não sou isso, não me sinto assim. Não sei porque falei, mas eu não me sinto assim. Como posso? Lá em casa isso é sempre ressaltado. Nós não somos bonitos, nunca seremos. E mesmo que eles ressaltem que eu tive "sorte", não me sinto assim. Uau, meu cabelo é liso e eu tenho uma pele mais clara. Mas sabe? Meus pais tem a pele quase retinta, o modo como eles ressaltam meu tom e elogiam, não me faz me sentir melhor. Porque... não me sinto uma garota negra porque meu tom é mais claro que o deles e eles gostam de ressaltar que eu sou "moreninha" e que "Sua pele não é negra, é só acastanhada! Ainda bem!", mas ainda sim sinto todo o peso de uma. Posso acreditar nisso, com tanta repetição, mas eles só fazem isso porque querem que eu me sinta melhor. E isso não me ajuda porque não me sinto pertencida e nem bonita, mas não pertencer a nada me faz perder o direito de me sentir assim.

— Não se acha bonita? — pergunta pra mim, quando eu paro.

— Como eu poderia? Independente de quantos traços "suaves" eu tenho, ainda tenho os traços ruins que eles ressaltam todos os dias. Além disso, é só dentro de casa. Tá chegando a reunião anual da família Pimenta e eu vou assistir minha avó ressaltando o quanto Laura, a única neta branca, é a garota bonita da família. Que ela parece europeia, que os filhos serão bonitos... Como eu poderia me sentir bonita se meus pais sentem vergonha do que são? Se eles me relativizam porque sabem que a cor deles, o peso e tudo é uma característica ruim? O empoderamento tá aí, o body positive, o debate contra o racismo... isso não entra na porta da minha casa. Você sabe, Isabela. Como eu posso dizer que eu sou a garota mais bonita do mundo?

— Você não sente o direito de não se achar bonita ou de achar? — me pergunta. — Qual é realmente o problema, Paloma? O que você não gosta em você? Não precisa responder, se não quiser, mas consegue pensar no que você não acha bonito? Não seus pais, não sua família.

Paro, lembrando de toda a minha aparência. Os olhos curvados, o cabelo, os lábios grossos, a pele... o nariz menor que meus pais, mas não tão "perfeito".

— Não odeio nada, mas também não amo. É que eu tô sempre em cima do muro, não é? Meus traços são "menos feios" que os dos meus pais, mas não significa que eles estão no parâmetro de beleza. Tenho uma resposta pra sua pergunta, não me sinto no direito de me achar feia, mas também não me sinto bem em me achar bonita. Me sinto confusa.

Manual para Garotas (que gostam de garotas)Onde histórias criam vida. Descubra agora