O telefone tocou várias vezes.
Eu me encolhi no quarto. Aguentei aquilo por tanto tempo. Não consegui tocá-lo nem para desligar e acabar com isso de uma vez. Só fiquei assistindo, querendo desaparecer. Mal comendo e me esforçando para demonstrar que não tinha ficado tão mal. Mas o pior disso, é que a dor era misturada com a culpa. De várias coisas. Culpa por querer esquecer Mica, culpa por ter repelido Maia desesperadamente...
Culpa por ser eu.
Sinceramente, às vezes é tão difícil lidar com isso tudo. É ver que você vai sempre regredir, independente do seu esforço. Entender que as pessoas vão cansar porque até mesmo você está cansado de tudo. Não posso culpá-las. Não posso ficar chateada se Maia não olhar mais na minha cara. Não posso culpar Fernanda por ficar receosa depois do meu sumiço sem explicação e sem respostas.
Em alguns momentos, queria poder dirigir. Pegaria estrada, respiraria em algum lugar vazio, com o vento soprando meu cabelo e ignorando todo o resto. Pensando só em mim. Em como dei duro para chegar aqui. Na minha própria resistência.
Sexta-feira eu me levanto. Saio de uma crise em que levantar para ir ao banheiro doía e vesti meu uniforme. Sorri para os meus pais e tentei demonstrar que estava melhor. Ouvi eles comentarem sobre a reunião de família no próximo sábado e tentei fazer as mesmas caretas que faço sempre que isso se aproxima, mesmo que no fundo esteja apática.
Quando vi Fernanda, mantive o personagem. Conversei, dei meio sorrisos e ela deve ter percebido que não era uma boa comentar sobre. Se comentasse, eu iria desmoronar. Sei que iria. Bem longe de mim, vi Maia passar. Nem uma troca de palavras. Nada. E isso me deu um nó no estômago. Queria uma forma de me punir por isso. Por ser uma péssima pessoa. A pontada daquilo que eu não pensava há um bom tempo surgia. Não queria morrer, queria sumir. Mas se eu não podia fazer isso, precisava de algo que fizesse meu cérebro esquecer um pouco.
Uma dor mais forte.
É óbvio que eu não faria isso.
Uma recaída significa várias recaídas. Até que não se torne uma recaída, mas algo constante. Banal.
E sinceramente, eu não mereço isso. Sei que não mereço. Que não é justo me autodestruir porque não tenho culpa. Essa parte do meu cérebro ainda é forte para impedir os avanços da outra parte que só quer me prejudicar. Martelar coisas ruins, exagerar. Dizer que a ligação foi algo sobrenatural para me dizer que eu sou uma péssima amiga. Criando coisas irreais só pra me magoar.
Quando a aula acabou e Fernanda foi embora, senti os olhares de quem me viu chorar na quarta. Atravessei o pátio e fui até o final do corredor. Olhei o memorial, peguei um post-it na minha mochila e com uma caneta cheia de brilho escrevi em letras garrafais.
"Me desculpe por ser uma péssima amiga."
Coloco na pequena passagem que permitiu que deixassem recados quando ela morreu. Fico mais um pouco olhando a imagem dela e tentando gravar cada detalhe. O sorriso. Os olhos risonhos. Não posso esquecê-la. Sou sua melhor amiga. Ela morreu comigo assim, não posso decepcioná-la.
Me viro, caminhando em direção a saída do colégio. Sei que qualquer demora nesse momento causará preocupação desnecessária e eu não quero que ninguém mais fique mal por minha culpa.
— O André vai pra festa do Matheus hoje, eu preciso ir — Rafaela comenta. — Se a minha irmã for, minha mãe vai deixar.
— O mole é ter que pagar a entrada pra mim.
— Não esquenta, eu pago pra você. Só não quero ficar sozinha.
Me viro pras duas, que andam mais lento do que eu.
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Manual para Garotas (que gostam de garotas)
Novela JuvenilPipa escreve histórias sáficas. Ela não é uma escritora famosa, tão pouco profissional e é segredo de estado. Não que precise fazer muito além de ficar com bico fechado, claro. Enquanto sua terapeuta contesta a falta de experiências reais e sua mãe...