De volta aos velhos tempos.
Não consigo olhar na cara da Gaia por pura culpa e vergonha. E acho que ter respondido "não consigo responder agora, mas prometo que respondo" foi a cereja do bolo. Em que momento da minha vida eu virei isso? Talvez eu não possa culpar o que aconteceu com Micaela pelo jeito que sou. Ela era totalmente o oposto e sempre me apoiou a sair desse casulo.
É engraçado como não houve um trauma além do fim. Não tivemos uma briga, não houve um mal entendido... não era a amiga magra maldosa que acabava falando besteiras — mesmo sem querer. Sei que ela não relutaria quando soubesse que eu era lésbica, não ficaria com medo de mim...
Se estivesse aqui, ela brigaria comigo e passaria um dia inteiro dizendo "fique com aquela garota". A real é que Gaia e ela se dariam bem. Não que as duas provavelmente não tenham se conhecido em algum momento, mas acho que seria bom se elas fossem amigas.
Como ela não está aqui, a decisão realmente fica comigo.
É difícil tomar decisões sozinha quando se passou tanto tempo evitando interações sociais e antes tinha um ombro amigo para te auxiliar de forma parcial — assim, eu não precisaria escolher.
Que droga.
No computador, aba aberta do Docs. Não é um bloqueio criativo o que sinto, é mais uma falta de coragem. Tenho uma paralisação de atitudes desde que tive a recaída. Parece que não consigo sair do lugar porque penso em todas as coisas e sinto que se eu fizer uma, implicará em fazer todo o resto.
Até porque estou agindo como se ainda estivesse no pico da crise e não conseguisse fazer absolutamente nada.
No momento, é a minha desculpa pela covardia.
No espelho, de pijamas da Mila e Co. Guardo o que Gaia me disse e com a ajuda da minha mãe consegui deixar mudas separadas de fácil acesso. A roupa limpa, recém trocada, me faz não parecer tão ruim junto a minha aparência. A parte natural do cabelo está ganhando espaço e tirar a tinta preta me fez desgastar a cor rosa também. Apesar disso, não vou retocar. São seis da tarde, mas o tempo está tão fechado que parece a noite.
Pantufas nos pés e a expectativa de algo quente hoje. Mesmo que minha família não seja do tipo que só faz comidas quentes em épocas frias, é muito melhor quando o suor não sai do seu rosto. E eu torço para que eu consiga comer alguma coisa e não me sinta indisposta.
No celular, que evito pegar, sei que tem mensagens de Fernanda. Eu estou tentando evitar, mas me sinto mal mesmo que tenha avisado que é melhor se afastar para ninguém se machucar.
— Ei, ei — meu pai chama atenção, levantando minha garrafa de água. — Por que ela ainda está cheia?
É sua métrica de checar se todo mundo está bebendo água em dias chuvosos. Obviamente desânimo com adicional de um pouquinho de frio não ajuda muito a se hidratar.
— Prometo que vou beber mais — digo, me sentando no sofá. — Tem filme passando a essa hora?
— A novela das seis tava muito chata. Seu pai colocou um filme.
Suspiro, observando a tela.
Parece coisa que só acontece em filme. Aquela coincidência maldita. Na televisão da sala, Homem-Aranha. Tobey Maguire. Não sei qual é, pelo menos não reconheço a cena. Mas é como algo bem amargo no momento. Eu não sou Homem-Aranha dela, mas Fernanda também não é minha Gwen. Até porque eu não quero uma.
Droga.
— Mãe, por que a senhora está assistindo esse filme? — choramingo, cobrindo o rosto.
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Manual para Garotas (que gostam de garotas)
Novela JuvenilPipa escreve histórias sáficas. Ela não é uma escritora famosa, tão pouco profissional e é segredo de estado. Não que precise fazer muito além de ficar com bico fechado, claro. Enquanto sua terapeuta contesta a falta de experiências reais e sua mãe...