Quando você lê um livro de romance, normalmente ele é separado por três partes. O encontro, aquele onde o casal se encontra ou se vê pela primeira vez e forma afinidade. Depois, quando tudo está começando a dar certo: o conflito. Alguma coisa acontece, eles brigam e parece o fim daquele amor inteiro. Mas aí, óbvio, rola a reconciliação — a última parte.
Em posição de leitor, normalmente sabemos a nuance de tudo em algum momento. Se foi um mal entendido, algum antagonista fazendo besteira... E sei lá, no fim todo mundo fica de boa como se nada tivesse acontecido.
Nunca parei muito pra pensar o que os outros ao redor pensam sobre o que está acontecendo na história porque sei que no fim vai ficar tudo bem. Só que... não é assim na vida real.
Eu não acho que seja.
A família inteira do casarão deve me odiar. Talvez tenham dito coisas horríveis sobre mim porque, só talvez, sejam as coisas a se pensar. Alguém deve ter dito "não era saudável".
Não era, era? Todo mundo sabia que eu errava o nome dela, a quantidade de vezes que me isolei e a repeli... Não era saudável.
Pra ser sincera, acho que quase nada na minha vida foi.
Quando eu era mais nova, carregava o fardo da opinião da minha família inteira sobre cada canto de mim. Não tinha roupas legais, não tirava fotos e evitava um bocado de coisas. Depois, bem... aqui estava eu lidando com a morte da minha melhor amiga. Fugindo de amizades, me isolando, tendo crises de pânico no meio do colégio... Não fui infeliz a vida inteira, mas sei que não era bom.
Nunca tive a oportunidade de vivenciar algo saudável. Nem todo mundo precisa ser empático em relação a isso. Não é minha culpa, mas também não é de ninguém.
Quando eu discuti com Fernanda, esperei que as coisas se resolvessem mais. Aquele momento em que tudo se encaixa e caminha para a reconciliação. Não aconteceu. Gaia me deu chances até demais.
Na rua doze, estou decidida a seguir em frente. Em começar a me permitir ter coisas saudáveis. Com a mochila nas costas, depois de uma sessão extra de terapia para me manter firme.
Olhando para a casa amarela. Eu não sei expressar esse sentimento entalado em mim, mas aceitar senti-lo substitui a ansiedade.
Não estou em pânico. Talvez apenas 1% de mim queira fugir, mas o outro está firme na decisão de entrar.
Micaela, nos últimos dois anos eu me tranco no quarto no dia do seu aniversário. E tento não pensar, esquecer de tudo.
Hoje vai ser diferente. E talvez no ano que vem eu possa rir e lembrar do quão boas amigas fomos. Sem medo.
— Paloma, né? A amiga da Micaela?
Dulce. Faz tanto tempo que eu não ouço esse sotaque. Assinto, estendendo a mão. Um aperto de mãos silenciosos.
Quando ela olha pra casa, respiramos fundo em unanimidade. Os olhos cansados, provavelmente de uma filha longa, e a pele branca com traços de alguém aue já passou dos cinquenta. Ela amarra o cabelo pra trás, tirando a chave dos bolsos.
— Não dá pra prolongar mais — ri. — Minha irmã me provocaria me chamando de covarde. Ela riria tanto.
E Micaela provavelmente me diria "Você está com medo de uma casa? Se eu quisesse, poderia muito bem puxar seu pé em qualquer lugar". O humor dela sempre me salvou.
A chave emperra no portão, mas abre. O mato sobe ao redor da área da casa. As flores que o pai de Mica cultivava devem ter morrido e se perderem na imensidão de ervas daninhas. Eu já esperava que estivesse nessa situação, mas ainda é difícil absorver o abandono.
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Manual para Garotas (que gostam de garotas)
Novela JuvenilPipa escreve histórias sáficas. Ela não é uma escritora famosa, tão pouco profissional e é segredo de estado. Não que precise fazer muito além de ficar com bico fechado, claro. Enquanto sua terapeuta contesta a falta de experiências reais e sua mãe...