— Eu... preciso conversar com vocês.
Estou com tiques nervosos por todo o corpo. Não é incomum, mas estão acentuados. Todas as meninas estão procurando um espaço no sofá: com os olhos atentos e sem entender muito do motivo da reunião. Em pé, inclinada na poltrona, mamãe também me fita curiosa e um tanto quanto preocupada.
Será que realmente é uma boa hora?
E se... todo mundo ficar chateado? Me odiarem? Gaia... Violeta... Rafaela... mamãe?
Seja firme.
Pego o balão preto novamente. Soltei por medo de estourar antes da hora com as mãos inquietas, mas ficar no chão também não é uma boa.
— É que... — travo.
Meu coração vai sair pela boca.
— Respira fundo e expira — Violeta pede. — Tá tudo bem, Laura. Não precisa falar nada com medo.
Sim, metade do meu corpo é o medo em sua essência. Olho para nossa mãe. Ela não vai me expulsar... vai?
— Vocês juram que não vão me odiar? Juram mesmo? Eu sei que eu já sou um peso e...
— Mi amor, peso? De onde tirou isso? — me interrompe, calma. — Ninguém nessa casa é um peso. Minhas garotas são o motivo da minha felicidade.
Fecho os olhos.
— Não vamos te odiar, Laura — Gaia diz. — Somos uma família.
Somos uma família. Não uma família qualquer, não temos laço sanguíneo algum que crie um vínculo obrigatório. Uma família firme. Quando mamãe soube da possibilidade de Rafaela estar grávida, antes de brigar, ela a acalmou e a levou para fazer um exame de sangue. O negativo a fizeram conversar. Assim como ela quebrou a perna de Gaia por felicidade ou quando Gaia precisou passar pela prova final.
E bem, minha mãe não tinha uma personalidade tão calma. Ela só... sempre foi uma boa mãe. A briga? O sermão longo? Podia vir depois de resolver o problema.
Mas que problema teria para resolver agora?
Não era um problema. Se não era, não tinha uma resolução.
— Somos o casarão das garotas e isso sempre nos uniu. A gente tem dez bonequinhas sobre a estante. Uma cartolina na parede sobre isso. Temos... muitas coisas que enfatizam isso pelo casarão — começo.
Vai fundo.
— Mas o que acontece é que...
Travo novamente. Os olhos atentos, a ansiedade sobe mais que o esperado.
— Aprendi a tocar guitarra.
A confusão nos olhos suaviza um pouco.
— Uau, Laura. Não se preocupe, a gente sabia que uma hora alguém conseguiria. Não precisa achar que é diferente da gente, era só... uma brincadeira.
— Meu Deus, finalmente temos uma guitarrista na casa — Rafaela se anima.
Respira fundo e expira.
— Na verdade, sou diferente. Não quebrei de verdade a tradição de nenhuma garota do casarão conseguir tocar.
Apenas não pare mais e não estoure esse balão.
— Sei que vocês vão pensar "deveria guardar isso pra você até se tornar maior", mas sinto que preciso de certas mudanças. Mudanças que eu desejo muito. Acho que para ficar mais parecido com como me vejo e ser tratado da forma que vai me fazer bem.
Primeiramente, não ser incluída como uma garota.
— Não vou mudar radicalmente. Até porque...
Não tem um problema de verdade em mim. Não é um "odeio esse corpo e quero mudar absolutamente tudo". É um... todo mundo muda um pouco pra se sentir bem. Cortam o cabelo, fazem tatuagens, piercings e... até mesmo procedimentos estéticos. Ninguém está mudando o que é, só melhorando a casa em que viverão pro resto da vida.
Não estou mudando o que sou, até porque já sou o que quero. Só preciso contar para as outras pessoas e começar a mudar para a forma como realmente me vejo.
Use o balão.
— Bem, acho que não estou deixando explícito. Em partes, por medo. Mas... o apoio dos outros é irrelevante perto do de vocês. Amo vocês do fundo do meu coração.
Sorrio. Não é felicidade, é o último suspiro.
— Hora do chá revelação. Será que Laura é um garoto ou uma garota? — pergunto com as mãos tremendo.
Estouro o balão. Os confetes azuis.
— É um garoto. É um garoto.
Elas ficam em silêncio. Sem dizer absolutamente nada. Me fitando enquanto as lágrimas escorrem.
Por favor, digam alguma coisa.
Só... digam.
Bianca levanta. É seguida por Violeta e Juliana. Será que vão me deixar aqui?
Não, não vão.
Juliana puxa a cartolina pregada na parede, a rasgando. Bianca quebra uma das bonequinhas, jogando no chão para finalizar. Observo Rafaela ajudar Gaia a se levantar e ir até a caixa. A caixa que as duas estavam juntando para comprar um filtro de água com gás. O "o dinheiro será usado para salvar nossa vida" é substituído com canetão para "o dinheiro será usado para mudar a vida de". Sem nome.
— Mudanças precisam de dinheiro.
— E nós vamos acompanhar suas mudanças — Gaia sorri.
— Independente de qualquer coisa.
Sou surpreendido com o abraço da minha mãe. Apertado e nossas lágrimas se mesclam.
— Te odiar, mi amor? Minhas garotas e meu garoto são o motivo da minha felicidade. Não te amo por ser "uma garota".
As garotas me abraçam junto. Em um abraço sufocado, encontro a respiração mais calma que já deu nos últimos dias.
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Manual para Garotas (que gostam de garotas)
Fiksi RemajaPipa escreve histórias sáficas. Ela não é uma escritora famosa, tão pouco profissional e é segredo de estado. Não que precise fazer muito além de ficar com bico fechado, claro. Enquanto sua terapeuta contesta a falta de experiências reais e sua mãe...