Passado/Presente-em-sua-mente

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O que se faz quando o mundo cai sobre nossa cabeça? Essa pergunta povoava a mente de Sara na última semana.

Observando seu reflexo no espelho, passou a mão de leve sobre a cicatriz no alto de sua cabeça, a única prova do acidente que teve um mês atrás. Do qual não lembrava por mais que se esforçasse. Assim como os últimos dez anos...

Respirou fundo e reparou nas sutis mudanças em seu rosto e corpo. Seu rosto estava mais fino, maduro e, provavelmente por causa de seu estado atual, melancólico. Suas formas também mudaram. Sofreara tanto por ser a única em seu grupo de amigas a ter seios quase inexistentes, agora conseguia percebê-los mesmo com a roupa larga e horrorosa do hospital. Estava mais parecida com uma mulher adulta.

"Lógico, Sara, você tem vinte sete anos, queria continuar com o corpo de uma menininha?". Fez uma careta diante das palavras vindas de seu interior. Podia ser uma mulher madura por fora, mas por dentro era outra história. Sentia-se como uma criança perdida diante do desconhecido mundo a sua frente.

Pegou a escova pousada na pia e a passou devagar pelos fios longos e acobreados. Isso também lhe causara certa surpresa. Preferia a facilidade do cabelo curto, um pouco acima dos ombros, mas pelo jeito nos últimos anos decidira deixa-lo crescer e alcançar o meio das costas.

Era estranho olhar para o espelho e encontrar uma completa desconhecida, mesmo que fosse ela. Tudo era muito confuso e quando mais buscava em sua mente mais desnorteada ficava.

— Ai! Droga! — Respirou fundo e com esforço ao sentir uma pontada dolorosa na cabeça.

Largou a escova e voltou cambaleante para a cama. Deitou e olhou para enfermeira dormindo na poltrona.

Com certeza a mulher acordaria com muita dor nas costas. Esperava que o salário compensasse o esforço, pois ela não saíra do seu lado em nenhum momento, sempre pronta a atendê-la em tudo o que precisasse, sem deixa-la sozinha por um segundo que fosse. Aquilo lhe incomodava, principalmente quando queria conversar com sua madrinha e a mulher não tirava os olhos dela, atenta a cada palavra, ato ou gesto executado. Só não reclamava porque sabia que era paga para fazer aquilo: não tirar os benditos olhos dela.

Resignada, se ajeitou melhor na cama e voltou seus pensamentos para tudo que estava lhe acontecendo. Fazia uma semana que acordara naquele quarto, a memória prejudicada e esquecida alguns fatos de sua vida, incluindo estar casada com um homem lindo, porém muito sério e calado.

Estava assustava, confusa e perdida em si mesma.

Suspirou ao relembrar o quanto Rodrigo, seu marido esquecido, a tratava de um modo muito estranho. Após comunicar que estavam casados e, assim que ela recebesse alta do hospital, a levaria para o apartamento onde moravam - do qual ela não recordava - ele foi embora sem falar mais nada. Nenhuma palavra de carinho, nenhum "fique tranquila, meu bem", ou um beijo no rosto. Não que quisesse que ele a abraçasse ou beijasse, longe disso, o problema era a forma que ele agia, frio e indiferente a sua dor.

Quando é que mudara totalmente de gosto para homens? Até onde lembrava preferia os mais sensuais, alegres, que demonstravam o que sentiam. Seu "marido" estava longe de ser assim.

"Pelo menos ele é um pedaço de mau caminho". Sorriu com o pensamento. Isso era inegável, mas não mudava que em sua mente namorava outra pessoa. Onde estaria Rob?

Toda vez que sua madrinha vinha examinava, tivera vergonha de perguntar se sabia de algo sobre seu namorado, afinal, estava casada, com um homem do qual não se lembrava, mas estava. Além disso, a enfermeira na certa passava informações sobre tudo que via e ouvia para Rodrigo. Seria constrangedor chamar pelo namorado, ex nesse caso, que ainda sentia ser atual...

A situação em suas memórias era uma confusão absurda e queria ter algo, alguém, para se apegar. Estava em um nível de anseio por alguma normalidade que, assim que sua madrinha entrou no quarto para a última visita daquele dia, com a enfermeira dormindo, juntou coragem e perguntou baixinho:

— Madrinha, sabe algo do Robson?

Tatiana a encarou com atenção.

Sara notou a censura nos olhos da médica, mas não recuou. Engolindo a vergonha por pedir informações do ex-atual-em-sua-mente-namorado, devolveu o olhar, desejando passar nele todo seu desespero por ajuda.

— A última notícia que tive dele é que abriu uma galeria de arte no centro de São Paulo.

Sara sorriu. O sonho de Robson foi alcançado, ter uma galeria para expor suas obras. Então a tristeza a atingiu ao recordar que ele sempre a incluía em seus planos. Tinham terminado como? Quando? Por qual motivo?

Massageou a cabeça, gemendo com a pontada dolorosa que nublou sua vista.

— O que está sentindo? — Tatiana perguntou preocupada.

— É só uma dorzinha. Sempre que me esforço pra lembrar-se de algo ela vem — confessou.

— Tenha paciência. Com o tratamento reverteremos seu quadro.

Assentiu, embora paciência era algo difícil de ter trancada ali, com visitas esporádicas de seu marido esquecido.

Inspirou e expirou fundo. Pelo menos sabia que Robson e ela estavam na mesma cidade. Tinha se surpreendido quando Tatiana contou que morava na capital de São Paulo há alguns anos. Agora compreendi o motivo dos colegas da minúscula Cezário não visita-la. Infelizmente, seria mais fácil encontrar Robson em Cezário em vez de uma metrópole como São Paulo. Mesmo assim estava determinada a resgatar um pedaço de seu passado/presente-em-sua-mente.

— Madrinha, sabe o endereço da galeria do Robson?

— Sara, o que pretende?

— Só queria falar com ele, entender... — desviou os olhos para as mãos. — Nos amávamos tanto...

Tatiana acariciou o topo da cabeça da afilhada, consternada pela jovem.

— Não creio que procura-lo te ajudará a lembrar de algo. O efeito pode até ser o contrário — alertou. — Tranquilizar seus pensamentos, seguir o tratamento e descansar te fará um bem maior que confrontar pessoas.

Assentiu e fechou os olhos com força, para seguir o conselho, relaxar e aguardar com paciência. Porém, era mais fácil na teoria que na prática. Não conseguia relaxar presa em um hospital e sabendo que, assim que tivesse alta, teria de morar com um completo desconhecido que afirmava ser - e tudo levava a crer que era de fato - seu marido.

Páginas em Branco ~ DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora