Fingindo

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Acomodada em sua casa, Marta terminou de jantar, tomou banho e, após um momento de dúvida, pegou seu celular, acessou a agenda e, quando atenderam, soltou num só fôlego:

— Aqui é Marta. As fofocas são verdadeiras, a senhora Montenegro não se lembra de nada dos últimos dez anos.

— Muito bem, foi mais rápida do que imaginei para obter o que lhe pedi — elogiou uma voz suave de mulher.

— Não foi difícil, a senhora Montenegro parece outra, até me pediu que a chamasse somente de Sara. Se sente incomodada com o sobrenome.

— Mesmo? — A mulher do outro lado da linha riu. — Quem diria, a majestosa senhora Montenegro se desfazendo do título.

— Gosto mais dessa senhora Montenegro — declarou distraída.

— Imagino. Agora tenho que desligar. Venha amanhã receber seu pagamento e me contar mais detalhes.

— Sim.

Desligou o celular com os pensamentos longe. Queria saber para que as informações que passava serviam. Mesmo não sendo importantes, temia que fossem para prejudicar seus patrões. Não que gostasse de Sara, afinal a senhora Montenegro, antes daquele dia, nunca lhe dirigira a palavra, sempre a tratara como se fosse um móvel necessário e sem grande importância. Mesmo assim considerava errado o que fazia, embora admitisse que o dinheiro era mais importante que sua consciência.

~*~

Karen olhou para as horas em seu celular. Passava das dez da noite. Seu expediente acabava as nove, mas se seu amado Rodrigo decidisse ficar depois do horário, ela também ficaria. Preparou um café forte e com pouco açúcar, pegou a pasta de cima de sua mesa, arrumou o decote de sua blusa, fazendo questão de destacar seus seios e adentrou a sala do chefe.

Ficou confusa ao entrar na sala e encontra-la na penumbra, a única luz no local vinha da janela iluminada pelos prédios do lado de fora. Rodrigo estava sentado em sua poltrona, virado para a janela, o olhar perdido na paisagem noturna.

Acendeu a luz, mas Rodrigo não se moveu e nem olhou em sua direção, parecia estar em outro mundo, hipnotizado. Andou até ficar de frente para ele, que continuava ignorando sua presença.

— Trouxe uma xícara de café.

Avisou colocando-a em cima da mesa.

— Deveria já ter ido embora, Karen.

— O senhor também, mas não foi — retrucou antes de estender a pasta na direção de Rodrigo. — Assine e tudo ficara bem.

Com a testa franzida, Rodrigo olhou para a pasta e depois para a secretária.

— Não é uma opção viável, a situação mudou.

Karen não gostou daquelas palavras, sentia que o estava perdendo e não podia deixar isso acontecer novamente, não sem lutar.

— Tudo voltara a ser como antes, cedo ou tarde. — Se inclinou em direção ao chefe, fazendo o possível para atrair o olhar dele para seus seios. — O senhor a conhece, assim que recobrar a memória...

Rodrigo se levantou e se afastou de Karen, dando as costas para a secretária.

— Talvez esteja certa, mas, nesse momento, Sara precisa de apoio. — Passou os dedos pelos fios escuros do cabelo bagunçando-os. — Droga! Foi por causa dessa sua ideia estúpida que ela sofreu esse maldito acidente e quase...

— Ideia estúpida? Todos concordavam, você concordava — lembrou Karen completando com a voz carregada de cinismo e despeito. — Ela está fingindo, não duvido de nada vindo dela.

Rodrigo bateu com o punho fechado sobre a mesa com força, dirigindo um olhar colérico na direção de Karen.

— Você está se metendo demais na minha vida.

— Só quero o seu bem — ela retrucou o tocando no rosto. — Sempre estive e estarei do seu lado para ajuda-lo. Tenho de abrir seus olhos para quem Sara é.

Rodrigo a afastou sua mão.

— Sara é minha esposa. Estive cego quando aceitei seus conselhos. — Pegou a pasta que a secretária deixou em cima da mesa e a jogou no lixo. — O assunto se encerra aqui.

Observando Rodrigo se retirar da sala, Karen se inclinou e puxou a pasta do lixo.

— Só se encerrara quando eu tiver o que quero — murmurou com um sorriso determinado. — Você será meu, Rodrigo.

~*~

Dirigindo de volta para casa, Rodrigo pensou no que Karen dissera, sobre Sara fingir a perda de memória. Seria possível? Fazia sentido, visto que sua esposa ganhou muito com essa situação toda, e ainda seria uma forma dela o punir. No entanto, duvidava que Tatiana concordasse com uma ideia dessas. Mesmo não gostando dele, a médica tinha uma reputação a zelar. Sara jamais enganaria a própria madrinha, ou enganaria? Não, Karen dissera isso movida pelo ciúme.

Apertou o volante com força. Contratar Karen como sua secretária foi um erro. Deveria ter dito que não guardava mágoa e permanecido longe dela, mas, por decidir mostrar que a perdoou totalmente, piorou tudo. Talvez pudesse convencer Júlio a aceita-la como secretária. Provavelmente só conseguiria que ambos gritassem com ele, já que se odiavam, mas não custava nada tentar. Se falasse que seria para o bem de Sara, com certeza Júlio aceitaria.

Estacionou em sua vaga, entrou no elevador e ao chegar à frente da porta de seu apartamento parou, respirou fundo e girou a chave para entrar. Não sabia o que esperar. A imagem de Sara sentada no sofá com um copo na mão, pronta para arremessá-lo nele, dessa vez não o desagradava como antigamente. Pelo menos saberia que ela se lembrava dele.

Ao adentrar na sala encontrou tudo as escuras, com certeza, Sara já dormia. Andou desanimado em direção ao quarto de hóspedes, que ocupava agora, sem se preocupar em acender as luzes. A escuridão representava muito bem seu humor atual.

Ao se aproximar dos dormitórios viu um feixe de luz saindo do quarto principal, se aproximou da porta aberta e olhou para dentro estranhando vê-lo vazio. Caminhou para dentro e percebeu que o closet estava aberto, foi naquela direção e surpreendeu-se ao ver Sara sentada no chão.

Tinha ao lado uma caixa aberta, espalhadas a sua frente diversas fotos. Ela prendeu o cabelo no topo da cabeça e vestia uma saia minúscula na cor azul marinho e uma camisa branca. Após alguns segundos, vendo o brasão na altura do peito direito dela, reconheceu a roupa, era o uniforme da escola em que tinham estudando em Cezário.

Ficou em dúvida em se aproximar, mas essa escolha lhe foi tirada quando Sara o viu e sorriu.

— Você não mudou muito, né? — Ela voltou a olhar para uma foto em sua mão. — A mesma expressão de quando te conheci.

"Ela se lembrou de mim?", se perguntou ao ficar em pé do lado dela.

Páginas em Branco ~ DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora