Culpa

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Cansado e com um milhão de dúvidas rondando sua mente, Rodrigo abriu a porta do apartamento disposto a seguir o conselho de Júlio.

Ao entrar na sala percebeu que a televisão se encontrava ligada. Trancou a porta e caminhou na direção do televisor, notando sobre a mesinha de centro, uma grande tigela de pipoca, refrigerante e um copo com o final da bebida.

No sofá encontrou Sara deitada com um cobertor a cobrindo, os cabelos bagunçados e os lindos olhos verdes atentos no que era transmitido na tela de plasma. Como se notando sua presença, Sara o olhou e se sentou no sofá, um sorriso estranho se formando em seus lábios rosados.

— Boa noite! — disse tentando arrumar os fios sem muito sucesso. — Como foi seu dia de trabalho? — perguntou após desistir de pentear o cabelo com os dedos.

— Bem, mas seria melhor se tivesse aparecido na empresa. — Largou a pasta no chão e sentou-se ao lado dela, colocou seu braço em volta dos ombros dela e a puxou para um beijo rápido e suave, apenas um roçar de lábios. — Te esperei o dia todo.

Pega de surpresa, Sara não sabia como agir. Sentia-se mal pelo encontro com Robson, e o pior é que esquecera totalmente de ter dito que passaria no trabalho de Laura e depois jantariam juntos.

— Chovia muito, trovejando, então decidi vir da galeria para casa. — "Não deixa de ser verdade", pensou notando que Rodrigo não parecia convencido.

— Hum... — Os olhos negros se estreitaram como se quisessem ler a alma de Sara. — Além da galeria, conseguiu ir a outro lugar?

— Ah, sim, visitei minha madrinha. — Sentiu a pele se arrepiar quando Rodrigo acariciou seu rosto e seus lábios com o polegar. — E consegui um emprego.

— Emprego? — estranhou Rodrigo a encarando confuso.

— Minha madrinha me aceitou como funcionária no hospital Santana. — Sara não gostou da forma que Rodrigo agira e se afastou dos braços dele nervosa. — Sei que acha que tenho de ficar trancada aqui o dia todo, mas...

— Nunca disse isso — cortou Rodrigo irritado com o comentário e com a distância que Sara impôs entre eles.

— Mas me disse que larguei o trabalho ao me casar — devolveu.

— Largou porque decidiu sozinha que seria o melhor — Rodrigo explicou deslizando os dedos pelo cabelo da esposa ao completar pensativo. — Minha culpa foi não ter percebido que fazia isso para me agradar, não porque realmente queria.

— Eu pensei...

— Que eu era o monstro que estragou sua vida — completou Rodrigo após Sara deixar a frase no ar. — Fui em muitos aspectos, menos nesse.

— Aprova minha decisão de voltar a trabalhar?!

— Se vai lhe fazer bem e Tatiana aceitou, por mim não tem problema.

— Obrigado — agradeceu envolvendo o pescoço do moreno em um abraço apertado. — Não sabe o quanto isso é importante pra mim.

— Imagino — murmurou Rodrigo após Sara soltar seu pescoço e o olhar com um sorriso caloroso nos lábios. — Assim como sei que o que vou dizer agora também é importante para você.

De joelhos sobre o sofá e com as mãos pousadas no peito do moreno, Sara inclinou a cabeça pensativa, o sorriso perdendo a intensidade.

— O que foi? — perguntou quando Rodrigo afastou suas mãos e apoiou os braços nas próprias pernas.

— Quando me mudei para Cezário deixei em São Paulo uma namorada, por isso rejeitei você e a várias outras garotas do colégio por diversas vezes — começou tenso, porém a olhou e sorriu de lado. — Tenho de dizer que você era a mais persistente, me seguia a todo lugar, se jogava sobre mim, até se matriculava nos cursos que eu fazia e isso só piorou na faculdade — comentou com uma ponta de divertimento na voz.

Sara sentiu a face quente, envergonhada por sua atitude anterior.

— Quando decidi montar uma empresa em São Paulo em sociedade com Júlio, juro que pensei que me livraria de uma vez por todas de você, que a última vez que a veria seria no altar do casamento de Júlio e Laura, que aliais você obrigou a nos convidar para ser os padrinhos de casamento deles, consciente de que nunca negaria um pedido do Júlio. — Dessa vez Rodrigo riu baixinho, deixando claro que considerava a perseguição engraçada. — Mas você também se mudou para São Paulo, foi morar com sua madrinha e o marido dela, disse que queria trabalhar em um hospital conceituado, caso do Santana, mas eu sabia que tinha vindo atrás de mim.

— Como pode ter tanta certeza? — perguntou curiosa, sem acreditar que sua obsessão chegara a esse ponto.

— Simples: onde quer que eu fosse você aparecia — respondeu sorrindo de canto. — E você confessou isso para Laura, quando voltou a pedir que me convencesse a ser padrinho, dessa vez dos gêmeos, junto de você.

Sara desviou o olhar embaraçada, mas voltou a olha-lo quando Rodrigo falou amargurado:

— Foi então que peguei minha namorada, que nesse tempo passou a ser minha noiva, transando com outro, na cama em que dormíamos juntos todas as noites.

Observou Rodrigo ficar tenso e apertar as mãos com força. Imaginava que ser traído não tinha sido fácil, principalmente pegar a noiva no flagra. Sua culpa pelo encontro com Robson duplicou, mesmo que não tenha feito nada censurável. Com esse sentimento a dominando, se aproximou de Rodrigo e contornou a cintura dele com o braço, apoiando a cabeça no braço dele.

— Não fique triste — pediu com a voz calma e baixa, desejando conforta-lo. — Se preferi pode me contar o restante outra hora.

Rodrigo moveu a cabeça para olha-la, a vendo serena, acariciando de leve o braço em que estava apoiada.

Resistiu à vontade de deixar essa história para outra hora. Como Júlio mesmo aconselhara tinha de contar pelo menos a parte menos sórdida.

— Te pedi em casamento no mesmo dia, ao te encontrar em um bar em que fui afogar as mágoas. Casamos um mês depois. — Não se afetou quando Sara ergueu o tronco para encara-lo chocada com essa revelação. — Fui um egoísta ao me casar com você para substituir a mulher que eu amava e que me traiu.

Pensativa, Sara encostou-se ao sofá, um incomodo se alojando em seu peito. Conseguia sentir o olhar de Rodrigo sobre si, atento a cada reação que esboçasse. Não sabia como deveria agir ou o que deveria falar, estava esgotada e preferia nem pensar muito a esse respeito.

— Isso explica muita coisa. Agora entendo toda a minha insegurança — disse por fim, curvando os lábios em um sorriso forçado. — Ainda tem aquelas lembranças que tive, mas fico feliz que tenha decidido me contar que casou comigo sem me amar. — Enrolou o cobertor nas mãos e se levantou. — Hoje foi um dia bem movimentado. — Se inclinou para beija-lo na testa. — Boa noite, Rodrigo! Falamo-nos amanhã.

Afastou-se devagar em direção ao quarto, mas quando o som do televisor cessou olhou para trás, vendo a silhueta de Rodrigo iluminada pelas luzes provenientes da rua, de costas para ela, as mãos nos bolsos, sem fazer qualquer movimento durante os segundos que o observou. Respirou fundo e continuou o trajeto até seu quarto.

Páginas em Branco ~ DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora