Inconsequência

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Não era novidade ser chamada à sala do redator chefe, normalmente, para deixar algum artigo ou trocar palavras rápidas, mas nunca fora à porta fechada. Mesmo assim, Isabel sentiu todo o corpo vibrar de expectativa enquanto, de pé no meio da sala, acompanhava com o olhar o ele baixar as persianas das duas janelas e trancar a porta, com certeza para assegurar privacidade aos dois.

Parecia a realização dos seus sonhos. Logo após derrotar sua rival, teria finalmente o redator chefe aos seus pés. Já conseguia se imaginar sobre a mesa de mogno, as pernas envolvendo a cintura dele, beijando-o entre muitas outras coisas que envolvia a ausência de algumas peças de roupa. Porém, ao invés de agarra-la, Gabriel passou direto por ela, contornou a mesa e se sentou na poltrona apontando para a cadeira a sua frente.

— Sente-se. — O ouviu ordenar com seu tom imperioso avesso a negativas.

Rapidamente sentou-se, uma sensação incomoda a dominando diante do olhar que o Sampaio lhe endereçava e piorando conforme ouvia o motivo da "reunião particular". Ao fim, sem acreditar no que acabara de ouvir, Isabel se levantou e encarou Gabriel com indignação e surpresa. Toda a fúria que sentia ficando evidente pelos punhos cerrados que apoiara sobre a mesa e o corpo tenso inclinado em direção ao redator chefe.

Em contrapartida, Gabriel continuou sentado em sua poltrona, os lábios finos cerrados em uma linha fina enquanto a fitava fixamente. Dois pedaços de iceberg, na opinião de Isabel, que não transpareciam qualquer sinal de arrependimento, satisfação ou zombaria. E era justamente zombaria que deveriam espelhar, porque o que Gabriel acabara de lhe contar era uma piada de extremo mau gosto.

— Isso é algum tipo de brincadeira? — Isabel conseguiu perguntar, a voz arrastada por culpa do esforço para não gritar de raiva.

— Não faço "brincadeiras" com situações sérias.

— Você estragou tudo o que demorei meses para conseguir — gritou sem conseguir conter-se nem mais um segundo.

— Aqui é um local de trabalho, evite fazer escândalos — Gabriel mandou com o olhar glacial.

— Para o inferno! Faço o escândalo que eu quiser — Isabel continuou aos berros, sem se importar que seus colegas ouvissem. — Porque diabos fez isso comigo? — quis saber sentindo os olhos arderem e a garganta travar. Era vergonhoso, mas tinha vontade de chorar, espernear e virar a mesa em cima de Gabriel Sampaio.

— Só estou agindo com profissionalismo, algo que você parece ter esquecido que existe — Gabriel respondeu. — A Famous trabalha com fofocas? Sim. Porém, não fabricamos e nem ajudamos a fabricar falsas verdades. Sua matéria sobre os Montenegro foi boa, vendeu? Sim. Mas se pretende obrigar a Marta a mentir para escrever outra matéria do tipo, desista.

— Tem alguma coisa com aquela mosca morta por acaso?

— O nome dela é Marta — Gabriel corrigiu. — Creio não ser difícil de lembrar já que a usou por tanto tempo em sua vingança idiota. E o único que tenho é uma grande amizade por ela.

— Ah, sei, e isso inclui alguns momentos "amigos" na cama? — perguntou com um riso forçado e carregado de maldade e desprezo. Gabriel não respondeu e com ódio Isabel completou ácida. — Deveria ter imaginado que a sonsa iria correndo pedir ajuda ao seu "príncipe de cavalo branco".

— Sabe, Isabel, quando me contrataram para o cargo de editor chefe solicitei alguns dados dos funcionários, porque queria chegar o mais informado possível — disse Gabriel ao se levantar e andar em direção à loira. — Sua ficha teria sido exemplar se não fosse por um detalhe: O episódio Sara Montenegro.

— Sei disso. Por isso fiz tudo o que fiz — resmungou Isabel endireitando o corpo para fitar com desafio o Sampaio que se colocara a sua frente. — Agora vem você usar sua autoridade para me obrigar a desistir dos meus planos.

— Arruinar um casamento não é um plano, é inconsequência — cortou Gabriel com o tom seco e os olhos presos nos de Isabel. — Você não entende, não é? Não consegue enxergar nada além dessa estúpida vingancinha. Se tivesse mantido sua boca fechada após o ataque da Montenegro o cargo teria sido seu. Mas, ao contrário, preferiu sair narrando todo seu passado com os Montenegro, como uma estúpida defesa contra as acusações que recebeu, e não notou que seus colegas só aguardavam um deslize seu para cavar sua cova — revelou rude enquanto se aproximava ainda mais da loira. — A Diretoria ouviu tanta fofoca que preferiram procurar por alguém com maior estabilidade. Alguém que não se deixasse levar por sentimentalismos bobos. Essa é a verdade. Se quiser se vingar, se vingue de si própria, de sua falta de controle diante de uma adversidade.

— Foi culpa da Sara... — protestou, logo sendo interrompida.

— Essa desculpa talvez me convencesse meses atrás, mas não agora. Não depois de tantas loucuras da sua parte, de induzir Marta a largar o trabalho que arranjei pra ela aqui e espiar o casal Montenegro e, principalmente, não depois de ameaça-la só porque se negou a mentir para te ajudar.

— Ah, por favor! O que ela ganhava limpando o chão não é nem metade do que ganha agora. Recebeu muito bem por tudo o que fez, tanto dos Montenegro quanto de mim — se defendeu se afastando conforme o Sampaio andava em sua direção. Isso até sentir a parede a suas costas e Gabriel espalmar as mãos de cada lado de seu corpo, não chegava a toca-la, mas evitava qualquer tentativa de fuga. — Vai me dizer que nunca perdeu o controle ou fez algo fora dos padrões pelos seus interesses? — Isabel perguntou o queixo erguido em uma forma de desafio. Nunca havia permitido que um homem a rebaixasse e não seria agora que faria isso, principalmente para aquele que achava que o mundo deveria se curvar as vontades dele.

— Já fiz, porém, sem utilizar coação ou mentiras — informou Gabriel com a face tão perto que seu nariz quase tocava o dela. Isabel segurou a respiração quando ele inclinou-se para sussurrar algo em seu ouvido, o hálito quente acariciando sua orelha sensível ao declarar: — Caso fizesse tudo que tenho vontade, da maneira que tenho vontade, seria acusado de assédio.

Isabel não soube decifrar se o arrepio que dominou seu corpo era devido às palavras sussurradas, estranhamente doces e suaves, ou pelo contato do hálito quente em sua orelha. Talvez uma mistura dos dois. Levantou automaticamente os braços na intenção de envolvê-lo em um abraço, porém Gabriel se afastou tão rápido quanto se aproximara e sentou sobre a mesa, a voz voltando ao tom frio e autoritário.

— Deixei tudo bem esclarecido, portanto, volte ao seu lugar.

Incrédula com a rapidez com que Gabriel passava de quente para frio, Isabel se recompôs e tentou mostrar segurança ao andar até a porta para destrancá-la.

— Só mais uma coisa, Isabel. — Gabriel chamou a atenção da loira que acabara de abrir a porta. — Há algum tempo Cosme vem pedindo mais assistentes para a seção de culinária. Penso seriamente em indica-la.

— Não entendo nada de culinária — retrucou entredentes sem se virar para olhá-lo, a mão apertando a maçaneta com força ao imaginar as palavras que se seguiriam.

— Então, caso não pretenda aprender, espero que se controle. — O ouviu sentenciar ameaçador.

Isabel não duvidava nem por um segundo que ele era capaz disso e muito mais por sua amiga.

Páginas em Branco ~ DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora